segunda-feira, 23 de setembro de 2013

No rescaldo dos incêndios florestais (carta aberta ao Dr. José Luís Arnaut).

Tomo a liberdade de lhe dirigir a presente missiva, tendo em conta algumas das suas afirmações sobre os incêndios florestais, concretamente as reproduzidas pela Antena 1, a 9 de setembro último.

Assumo igualmente a responsabilidade de a tornar pública, com o intuito de dar um mísero contributo à discussão desta temática, talvez menos apaixonada, mas seguramente, mais séria.

As citações abaixo comentadas, correspondem a posições comuns a muitos outros comentadores em Portugal, e que deveriam ser abordadas em clima mais profissional e seguramente fora do período estival.

Vejamos então:

A)      

Quando refere “...porque o Estado também é um grande proprietário”, temos de ter em conta que o Estado dispõe apenas de 2% da área florestal nacional. Serão razoáveis apenas estes 2%? Deveria possuir mais território? Gere adequadamente o património público? Será Um excelente tema de debate futuro!

Não se deve confundir posse com “servidão” ambiental. O Estado impõe deveres, sem contrapartidas, às centenas de milhares de proprietários privados envolvidos dentro das fronteiras da Rede Nacional de Áreas Protegidas, da Rede Natura 2000 ou da Reserva Ecológica Nacional. Mais outro interessante tema para um debate futuro, associando a estes redutos, por exemplo os dados do INE sobre a variação populacional (êxodo rural, despovoamento), bem como os associados aos fenómenos da desertificação.

Igualmente, não pode ser confundida posse com cogestão. Em muitos milhares de hectares de áreas detidas por comunidades rurais (baldios), o Estado impõe-se na gestão com uma falta generalizada de eficiência e de eficácia, privando as populações de uma fonte de rendimento que lhes é hoje excecionalmente essencial. Aqui outro tema para abordagem.


B)      

Para a concretização das operações técnicas associadas à prevenção de incêndios, é usual a menção de envolvimento "... dos desempregados". Outros comentários alargam ainda o envolvimento a beneficiários do RSI ou mesmo dos reclusos.

No caso em apreço, importa ter em conta:

- Estes grupos não são homogéneos, designadamente quanto às motivações, às qualificações e às experiências/competências dos seus integrantes;

- Possuindo as operações de prevenção de incêndios um carácter técnico, quem custeia a formação destas pessoas para a operacionalização destas ações e por quantas repetições terá essa formação desempenho prático?

- Formar-se-íam equipas permanentes? Gastar fundos públicos para formar e obter benefícios por um curto período (p.e., num ano) é facilmente classificado como despesismo.


C)     

Sobre a indústria da pasta e papel, referiu: "Eu sei que há fundamentalistas que combatem a política do eucalipto, mas é verdade é que nas terras que têm eucalipto, a floresta é limpa”.

Importa ter presente que, do total de área florestal ocupada por eucalipto – estimado em 817 mil hectares – a indústria tem sob sua posse cerca de 156 mil hectares, ou seja, menos de 20% do total. Toda a restante área de eucaliptal é detida por centenas de milhares de famílias.

Aqui chegados, duas questões se colocam:

1.      É o eucaliptal na posse das famílias bem gerido?

De facto, existem em Portugal áreas de média e grande propriedade com a gestão florestal certificada por normativos internacionais. Representam contudo menos de 15% da área total de eucalipto em Portugal e estão centradas na bacia do Tejo.

Nas demais áreas detidas pelas famílias, vários estudos apontam para o aumento do abandono na gestão florestal dos eucaliptais nacionais, situação associada ao declínio do rendimento empresarial líquido dos produtores, evidente desde 1975.

2.      São as áreas de eucalipto na posse da indústria de pasta e papel bem geridas?

No caso concreto, importa ter presente a suspensão recente da certificação florestal numa das duas empresas que operam em Portugal, fruto das não conformidades graves evidenciadas na gestão das áreas florestais sob sua posse.

No que respeita à outra operadora, temos fortes dúvidas sob a qualidade da gestão dos seus povoamentos de eucalipto. Tal preocupação já foi transmitida à entidade que os certificou, designadamente se o processo mencionado como de valorização agronómica dos resíduos industriais se insere numa adequada estratégia de fertilização florestal, ou num mecanismo expedito de deposição desses mesmos resíduos em solos florestais. Aguardamos respostas.

Por outro lado, nesta segunda empresa, embora não associado às áreas de eucalipto, temos sérias dúvidas sobre a boa aplicação de fundos públicos em ações de florestação levados a cabo em áreas sob a sua posse ou gestão. Gostaríamos muito de as poder visitar e de ter acesso aos contratos assumidos com o Estado Português e com a União Europeia.

Sobre o eucalipto em Portugal, a 5.ª maior área a nível mundial, o facto é que, apesar do aumento significativo de área nos últimos 30 anos, a produtividade média unitária nacional remonta a valores já registados em 1928. Investiu-se em quantidade, não em qualidade. Esta é usualmente a estratégia seguida em países subdesenvolvidos ou, como hoje se classificam, em vias de desenvolvimento.

Ainda a propósito desta cultura, seria interessante averiguar a razão do uso monopolizado da espécie pelo setor da pasta celulósica e papel. Qual o motivo para não se investir na utilização do eucalipto para a produção de madeira serrada, de maior valor acrescentado que a rolaria? Não é certamente por motivos tecnológicos. A madeira serrada de eucalipto pode ser utilizada para a construção, ou mesmo em carpintaria, para a produção de mobiliário de cozinha. Por outro lado, a produção de biomassa dedicada a partir desta espécie pode ter um impacto considerável no abastecimento de centrais termoelétricas, reduzindo a importação de fontes de energias fósseis, como o petróleo ou o carvão mineral.



D)     

Manifestamos a nossa concordância quanto ao facto de que “... tem de haver fundos para a floresta ".

Poder-se-à discordar contudo quanto à sua aplicação futura (PAC 2014/2020).

Nos 30 anos de experiência na aplicação de fundos públicos de apoio à floresta, vemos que as consequências têm sido desastrosas. Veja-se por exemplo que, apesar dos 700 milhões de euros despendidos em pinhal bravo, o que potenciaria cerca de 350 mil novos hectares, o facto é que a área de pinhal bravo contraiu cerca de 400 mil hectares. Estarão os contribuintes, contra a sua vontade, estiveram a financiar os incêndios em Portugal?

Na aplicação dos fundos públicos temos de mudar de paradigma:

- Apostar mais na organização técnica e comercial do setor produtivo do que em florestação,
- Resguardar o investimento em florestação para ações de conservação de solos, de linhas de água;
- Associar a investimentos em greening da PAC;
- Concretizar investimentos pelas Zonas de Intervenção Florestal ou entidades similares, mas com personalidade jurídica; ou ainda,
- Apoiar investimento na criação ou reforço da capacidade de autoabastecimento em áreas a adquirir, arrendar ou contratualizar entre a indústria e a produção florestal.


Por fim, no que à atuação do Ministério da Agricultura diz respeito, subscrevo na integra as suas afirmações. Os autodenominados defensores da lavoura e dos contribuintes demonstraram que a prática é a exceção à teoria apregoada. 

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Contribuindo para a valorização dos comentários, reforço abaixo alguns conceitos da engenharia florestal, muito associados à temática dos incêndios.

Comecemos pelo que respeita às operações técnicas de limpeza florestal.

Quando usada pela gíria estival, não se percebe se a referência é a limpeza interespecífica, intraespecífica ou total, bem como se é para ocorrer dentro de povoamentos florestais ou nos seus limites (bordadura).

Importa ter em conta que:

- Na limpeza interespecífica, serão removidas as espécies herbáceas e arbustivas que concorram com a cultura principal, excetuando a destruição de espécies florísticas protegidas
- Na limpeza intraespecífica, removem-se as árvores mortas, malformadas ou dominadas da espécie silvícola em produção.
- Na limpeza total procede-se à remoção dos extratos herbáceo, arbustivo e arbóreo, aplicado p.e. em faixas limites da rede viária ou junto a outras infraestruturas, como habitações ou instalações industriais.

No que concerne à operacionalização dessas limpezas em florestas, importa concretizar se a aposta recai no recurso a meios manuais, a meios motomanuais, a meios mecânicos, por meios químicos, pelo pastoreio ou através da técnica do fogo controlado.


Quanto ao conceito de gestão florestal, este foi inicialmente apresentado em 1958 pela Society of American Foresters, como sendo a aplicação de métodos comerciais e de princípios técnicos florestais na administração de uma propriedade florestal (ou de um conjunto de propriedades florestais, talvez mais adequado ao cado nacional). Atualmente este conceito incorpora a necessidade de garantia da sustentabilidade dos ecossistemas.

Aqui chegados temos pelo menos quatro problemas muito sérios (a ordem é arbitrária):

1.      Métodos comerciais.

Assiste-se em Portugal a um forte movimento de concentração ao nível dos clientes de produtos silvícolas (a indústria), o que pode não ser negativo no plano externo. Há que observar, contudo, os indícios de concorrência imperfeita e a ausência de acompanhamento dos mercados internos por parte dos Ministérios que tutelam á área florestal e a atividade industrial.

Os pequenos proprietários, que detêm as áreas florestais com maior risco de incêndios, são desprovidos de capacidade negocial face à indústria.

Não haverá aqui responsabilidades de quem representa económica e profissionalmente os proprietários florestais? Com toda a certeza! Todavia isso não desresponsabiliza o Estado, mais ainda quando são os contribuintes que, no final, assumem a maior fatia dos custos com os incêndios, bem como os da proliferação sem controlo das pragas e das doenças pelas florestas portuguesas..

A gestão florestal, ou a administração de uma propriedade florestal acarreta necessariamente custos. Tais custos têm de ser suportados pelos negócios silvícolas e não pelos contribuintes, como defendem alguns industriais.

A ausência de gestão (o efeito), não é mais do que uma adaptação à ausência de expectativas de rentabilidade (a causa).

2.      Princípios técnicos florestais.

Estamos num país desprovido de serviços de extensão florestal (públicos ou privados), sem acompanhamento técnico que potencie a ligação entre os centros de investigação e as propriedades florestais privadas (mais de 90% da área florestal nacional).

O associativismo florestal foi, é e continuará incipiente enquanto depender maioritariamente do Orçamento do Estado. Enquanto não for capaz de constituir fontes próprias de rendimento, Fontes essas assentes preferencialmente nos negócios que potenciam aos proprietários florestais seus associados. Atualmente temos organizações de proprietários florestais muito tecnicistas e pouco comerciais.

3.      Sustentabilidade dos ecossistemas florestais em Portugal.

Colocada em causa em 1996, num estudo desenvolvido pela Poyry, pelo Banco BPI e pela Agro.ges, diagnosticou-se a ocorrência em simultâneo de situações de subaproveitamento e de sobre-exploração dos recursos florestais. Ao crescente abandono dos espaços florestais, está associada uma maior pressão decorrente do aumento das necessidades industriais. Desde essa altura a situação só piorou.

A atividade silvícola que suporta estes ecossistemas tem merecido do INE, nas Contas Económicas da Silvicultura, a menção de estar em declínio progressivo.

Se analisarmos o peso do VAB da silvicultura no VAB nacional (ou seja, sem considerar as indústrias a jusante), este era de 1,2% em 1990, decrescendo para 0,8% em 2000 e reduzindo ainda para 0,4% em 2010.

O peso do setor no PIB (aqui já no contexto das fileiras silvo-industriais) este foi de 3,0% em 2000, contraindo para os 1,8% em 2010 (com o decréscimo mais evidente na componente industrial).

4.      Variação populacional no território continental.

Os dados disponíveis no Census evidenciam uma forte migração das populações rurais para o litoral e centros urbanos, ou mesmo a emigração, nas últimas décadas, ou seja já em pleno regime democrático.

É certo que tais variações não serão decorrentes apenas do declínio da atividade silvícola, mas sim de um conjunto mais vasto de motivos, entre os quais está a própria consociação da atividade florestal com a agricultura, com a pastorícia, com a caça e outras atividade recreativas ou com a pequena e média indústria transformadora de base local e regional.

Importa ter em atenção que, com as famílias longe das suas propriedades, dificilmente poderá haver uma gestão florestal ativa e sustentável. A menos que muitas delas delguem a gestão das suas propriedades a terceiros, mas sempre numa base assente no mercado, não nos contribuintes.

Inserem-se aqui as Zonas de Intervenção Florestal, ou preferencialmente entidades juridicamente mais consolidadas, como sociedades comerciais de gestão de grupo ou de gestão florestal, ou de fundos de investimento imobiliário, ou de investimento industrial em reforço do autoabastecimento (seja por aquisição, arrendamentos ou de contratos de futuros).


Por último, o ordenamento florestal - que na gíria estival se confunde com ordenamento da paisagem ou ordenamento do território – que é tão só o conjunto de normas pelas quais se regulam as intervenções de natureza cultural ou de exploração com vista à obtenção de um objetivo pré-determinado, tendo em conta uma regular oferta do(s) produto(s) obtido(s) na propriedade florestal (ou no conjunto de propriedades florestais).

Na prática, o ordenamento florestal pode traduzir-se no planeamento de intervenções que proporcionem, entre os vários prédios rústicos ou nas várias parcelas detidas por um proprietário (ou por um conjunto de proprietários), a obtenção de rendimentos de forma mais regular, não tão dependente dos médios e longos períodos de retorno do investimento florestal. Por exemplo, se o produtor optar pela arborização em diferentes anos por prédio ou parcela, poderá obter (controlados os riscos) receitas desse arvoredo em diferentes anos, em períodos mais regulares do que florestando todo o seu património num mesmo ano. Prédios ou parcelas com arvoredo de diferentes idades, de diferentes alturas, proporcionam dificuldades acrescidas à propagação dos incêndios dentro das manchas florestais.

Um outro exemplo é o ordenamento por talhões de diferentes idades de arvoredo no Pinhal de Leiria, onde em cada período, de um ou mais anos, se usufruem das receitas do corte de talhões que atingiram a idade de corte, enquanto outros estão em crescimento e outros serão reflorestados.

Facilmente se constata que, sem negócio não haverá suporte à gestão, sem gestão não há ordenamento florestal.

O ordenamento do território é um outro assunto.

Paulo Pimenta de Castro
Engenheiro Florestal
Presidente da Direção da Acréscimo, Associação de Promoção ao Investimento Florestal