quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A União Europeia no combate à desflorestação


O Parlamento Europeu apelou este mês à Comissão Europeia para propor legislação que assegure que o consumo da União Europeia não conduz à desflorestação global. Atualmente, não existe legislação que proíba a venda no mercado europeu de produtos que contribuam para a destruição das florestas. Mas, para além de produtos alimentares, há ainda a considerar a importação e o uso da madeira.

Combater a desflorestação é sinónimo de deixar de cortar árvores, mesmo em florestas nativas?

Não! De acordo com a definição vigente de floresta, da FAO (Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas), utilizada na União Europeia, no limite pode-se cortar uma floresta de carvalhos e instalar uma plantação de eucalipto, sem que tal signifique desflorestação. No caso, não se considera que houve uma alteração da ocupação do solo. Considera-se que ocorreu desflorestação quando essa ocupação altera para uso urbano ou para agricultura, mesmo que se instale uma cultura arbórea, como um olival ou um amendoal, para obtenção de fruto.

Em todo o caso, vamos continuar a cortar árvores. Em moldes científicos e técnicos adequados, o uso de madeira tem vantagens face a outros materiais, como o plástico ou o cimento, altamente poluentes, ou os metais, com os danos da extração mineira associada.

Em termos de emissões de gases de efeito estufa, elas serão mais reduzidas quanto maior for a longevidade dos produtos fabricados a partir da madeira. O carbono sequestrado nas árvores será mais rapidamente libertado quando associado ao uso de papel ou péletes energéticas. Por outro lado, será libertado a médio e longo prazo com a utilização preferencial da madeira em construção ou em mobiliário. A velocidade da libertação do carbono deve ser balanceada com a capacidade, mais ou menos lenta, de novo sequestro pelo crescimento das árvores.

Combater a desflorestação também é sinónimo de combate à perda de coberto arbóreo, de cobertura do solo por copas?

Não! Se depois de um corte raso de uma floresta centenária se semear ou plantar espécies florestais, mesmo que exóticas, de acordo com a definição vigente de floresta, não ocorre desflorestação. Todavia, perde-se coberto arbóreo. Ou, por outro palavras, combater a desflorestação não é sinónimo de combate à perda de biodiversidade, associada esta que está às copas, aos troncos e aos sistemas radiculares das árvores, bem como à sua expressão territorial. E como dependemos da preservação e conservação da biodiversidade!

O combate à desflorestação também pode não ser sinónimo de combate à erosão do solo ou à perda de capacidade de armazenamento de água doce. Dependerá do modelo de silvicultura empregue. Áreas sujeitas a cortes rasos, mesmo que depois sejam semeados ou plantados, expõem o solo ao risco de erosão e estão associados a perda de recursos hídricos. No caso português, estas situações assumem especial importância, face ao incontido avanço da desertificação.

Não deixa, pelo exposto, de se considerar curiosa esta decisão do Parlamento Europeu, quanto, por outro lado, aprovou a intensificação do uso de madeira para fins energéticos. Decisão essa, muito contestada e que está hoje na base de elevada perda de coberto arbóreo, mesmo em florestas centenárias, nos Estados Unidos, no Canadá, na Rússia e no Brasil, entre outros. É difícil estimar quanto dessa perda de transformará em desflorestação. Haja ou não desflorestação, a perda de biodiversidade é facto adquirido.

Não deixa, pois, de ser curiosa esta decisão dos eurodeputados no combate à desflorestação, quando este risco pode ser estimulado através de forte financiamento público à bioenergia. Sim, o abate de árvores em extensas áreas de floresta, para triturar madeira, peletizar e transportar para a União Europeia, para queimar e produzir eletricidade, só é possível com o generoso apoio dos contribuintes europeus. Estarão estes a contribuir para o aumento da desflorestação? E, se o risco é evidente além fronteiras da União, também o é dentro, incluindo em áreas destinadas à conservação da natureza, como as que integram a Rede Natura 2000.

Não deixa de ser curioso constatar este paradoxo. Seria bom que o Parlamento Europeu, na justificada preocupação face à desflorestação, revisse as suas decisões de estímulo à queima de madeira para a produção de eletricidade.

Paulo Pimenta de Castro

Engenheiro silvicultor
in Público, a 29/10/2020
https://www.publico.pt/2020/10/29/opiniao/opiniao/uniao-europeia-combate-desflorestacao-1937083?fbclid=IwAR1MkMM1Edd4Ex7fGRCP1yQVeghD2cG5QI-dgy7lccHLJBfzsT9EtJsWvyY

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O Pinhal do Rei

 3 anos depois do dia 15 de outubro


Passaram três anos do maior incêndio da Mata Nacional de Leiria (MNL), de que há memória, e apesar da necessária remoção dos pinheiros ardidos para a posterior recuperação do Pinhal, persistem talhões com madeira queimada por retirar (com material lenhoso de menores dimensões), maciços de espécies invasoras (com Acacia sp.) cada vez mais dispendiosos de controlar, talhões sem regeneração natural por reflorestar, e, áreas ribeirinhas que antes serviam as populações, e o turismo, para recreio e lazer, fortemente descaracterizadas por vegetação exótica com comportamento invasor (Eucalyptus globulus). Nos 3.539ha de zona de proteção, não são visíveis ações de restauro ecológico, ou de monitorização eólica, para além dos problemas fitossanitários identificados.

Relativamente ao modelo de gestão aplicado, tem-se evidenciado, até à data, sobretudo a componente extrativa, através do corte de material lenhoso de maior dimensão: pinheiros ardidos, árvores diversas derrubadas pelo Leslie, pinheiros que secaram devido a pragas e doenças, ou material lenhoso removido (de modo não seletivo) no âmbito da gestão de faixas de combustível. Durante o ano transato, observaram-se ainda ações de extração e trituração de vegetação, com recurso a maquinaria pesada, inclusive em áreas de elevada vulnerabilidade dunar, cujo destino será provavelmente a indústria da biomassa.

Ao nível da reflorestação do Pinhal, os talhões mais jovens (sem regeneração natural) e outros onde esta não ocorreu, somam 45% da área ardida (cerca de 4300ha) que necessita de ser reflorestada. No entanto, o tipo de espécies a privilegiar, e os talhões a intervir com plantações ou sementeiras, estarão ainda a ser definidos no Plano de Recuperação da MNL. Em finais do verão de 2019, registavam-se apenas 1.039ha rearborizados por voluntários, que atualmente exprimem uma reduzida taxa de sucesso em resultado de diversos fatores possíveis: a introdução de plantas provenientes de outros locais, e pouco adaptadas geneticamente  ao meio (no caso do pinheiro-bravo); períodos de plantação tardios; a cada vez menor disponibilidade de água nos solos; e a ausência de manutenção das plantações.

No que se refere à regenerarão natural, já visível nos milhares de pinheiros-bravos germinados e com sucesso vegetativo, ocorrerá apenas em 55% da área ardida (cerca de 5200ha), ou seja, em talhões que eram povoados com pinheiros de maior idade e que deixaram um banco de sementes com potencial regenerativo. Nestas áreas, será contudo necessário definir um plano de intervenção, que venha a garantir a condução da regeneração natural.



Atualmente, sobretudo nos últimos meses, destacam-se as ações de preparação do terreno, em alguns talhões, para plantações e/ou sementeiras, e a divulgação do concurso para a contratação de três técnicos para a Marinha Grande.

E o futuro? Numa época em que as alterações climáticas e as relações ecológicas em acentuado declínio, passaram a constar nas prioridades das agendas internacionais, a minha conceção para o futuro da MNL passa obrigatoriamente pela introdução de novas varáveis, num modelo de gestão florestal que se deseja dinâmico, aberto, pluridisciplinar e agregador.

Acredito que é no debate e construção de ideias que se poderão encontrar as melhores soluções para a recuperação da Mata Nacional mais antiga e emblemática do país, e que a participação dos cidadãos nos processos de decisão será essencial para o desenho sustentável do território e preservação da identidade florestal.

 

Sónia Guerra

Bióloga, Mestre em Ciências das Zonas Costeiras, especialista em flora e habitats da MNL

 

domingo, 11 de outubro de 2020

Florestas: entre os milhões e o desastre

 Nesta semana, assinala-se o terceiro ano sobre os grandes incêndios de Outubro de 2017.

A par do que ocorreu nos demais incêndios desse ano, bem como nos do presente quinquénio, pouco ou nada foi feito para que em dimensão similar tais catástrofes não se voltem a repetir. A referência à não mudança não respeita a deitar dinheiro sobre o problema ou a propagandear pseudo-alterações nos comportamentos. A referência respeita sim a alterações na orgânica do Estado, em instrumentos de política, e no ordenamento do território, em medidas de política ajustadas às efectivas capacidades atribuídas a tais instrumentos. Isto, tendo presentes o combate ao êxodo rural, às alterações climáticas, à perda de coberto arbóreo e da biodiversidade. A aposta política, de curta visão, tem sido em projectos piloto e em “inovação” ministerial: agora a aposta já não é na “grande reforma das florestas”, agora é na alteração da paisagem. Semântica, para alegrar os tolos!

Neste último quinquénio (2016-2020), embora ainda com dados provisórios referentes a 2020, arderam cerca de 850 mil hectares em território nacional. Sendo um facto que no quinquénio de 2001-2005 se ultrapassaram os um milhão e cem mil hectares, também é um facto que é no actual quinquénio que a área arborizada ardida ultrapassou a área de matos queimados. Desde que há registos, nunca tal tinha acontecido. Ou seja, sempre a área ardida em matos foi superior à área ardida em florestas e plantações arbóreas. Assim foi nos quinquénios de 1996-2000, 2001-2005, 2006-2010 e 2011-2015, respectivamente, com áreas ardidas em matos superiores em 256 mil, 105 mil, 177 mil e 161 mil hectares. No quinquénio actual a área arborizada ardida registou um diferencial de cerca de 155 mil hectares superior à de outra ocupação.

O facto é preocupante! Sobretudo, pelo impacto que tem na perda continuada de áreas de floresta autóctone, no agravamento do abandono de plantações e na proliferação pelo território de espécies exóticas e invasores. Para além de potenciar futuros incêndios, potencia uma contínua perda de solos, de capacidade de armazenamento de água, de biodiversidade, mas também de postos de trabalho e de riqueza, em especial junto das populações rurais.

Passados três anos anunciam-se mais centenas de milhões de euros para o sector silvo-industrial e para as florestas. Mas, tal permite algum sossego? Não, pelo contrário, pode assegurar-nos a continuação do desastre. Só na última década, entre 2011 e 2020, têm sido múltiplos os anúncios de centenas de milhões para esta área. Desde os 540 milhões do tempo da ex-ministra Assunção Cristas, anunciadas pelo então secretário de Estado, até aos 700 milhões do ex-ministro Capoulas Santos. Temos agora, em 2020, mais um anúncio de centenas de milhões de euros, desta vez protagonizado por membro do actual Governo.

Nunca houve tanto dinheiro disponível para o sector silvo-industrial nacional, sejam em subsídios directos, seja em benefícios fiscais. Nunca houve tanta destruição de florestas e tanto abandono de plantações lenhosas. Ou seja, nunca o esforço dos contribuintes, nacionais e europeus, alimentou tanta destruição e património natural em Portugal como nos últimos cinco quinquénios.

Vamos continuar nesta senda? Obviamente, tudo depende das escolhas que se fazem. Há sempre alternativa. Também é certo que as escolhas são influenciadas e mexem com interesses instalados. Não é novidade! A questão actual é saber que interesses irão prevalecer, se os de quem financia o “sistema”, se dos que dele se aproveitam para benefício próprio.

Venham as centenas de milhões de euros, mas actue-se sobre os instrumentos e as medidas de política, para assegurar que não se alimenta mais um ciclo de desastre. Para tal, existem propostas várias. Propostas de intervenção na orgânica do Estado, propostas (internacionais) de privilegiar sistemas culturais mais resilientes às alterações climáticas, mas que, sobretudo, quebrem o ciclo de destruição da biodiversidade. Dependemos dela para a nossa sobrevivência.

 

Paulo Pimenta de Castro
Engenheiro silvicultor