domingo, 24 de outubro de 2021

O paradoxo da Estratégia Europeia para as Florestas

 

No passado mês de Junho a Comissão Europeia aprovou a Estratégia da União Europeia para as Florestas, bem como a revisão da Directiva das Energias Renováveis (RED II).

 

No âmbito da Estratégia, o comissário do Ambiente, Oceanos e Pescas, Virginijus Sinkevičius, mencionou que «As florestas são uma grande parte da solução para muitos dos desafios que enfrentamos no combate às crises do clima e da biodiversidade. São também fundamentais para cumprir as metas climáticas da União Europeia para 2030. Mas o actual estado de conservação das florestas não é favorável na União Europeia. Temos de aumentar a utilização de práticas favoráveis à biodiversidade e garantir a saúde e a resiliência dos ecossistemas florestais».

 

No caso de Portugal a preocupação com a perda de biodiversidade assume especial preocupação, quando um relatório da OCDE regista o país com a segunda maior perda percentual de áreas naturais e semi-naturais ocorrida na União Europeia desde 1992.

 

A Estratégia apresentada em Junho pela Comissão tem sido objecto de críticas de vários lados. Sobre as críticas provenientes dos sectores silvo-industriais faremos uma análise noutra ocasião. O que de momento importa realçar é o paradoxo existente entre as principais preocupações manifestadas pela Comissão Europeia no âmbito da Estratégia para as florestas e a revisão da Directiva das Energia Renováveis que, ao permitir o uso em grande escala de biomassa florestal para a produção de electricidade, essencialmente de troncos de árvores, potencia a perda de coberto arbóreo, a perda de solos, da sua capacidade em reter água, a destruição de ecossistemas, a perda de biodiversidade. Em simultâneo, o uso em larga escala de troncos de árvores para bioenergia potencia maior volume de emissões de gases de efeito estufa, bem como produz aumento dos níveis de poluição atmosférica, com impacto na saúde pública. Curiosamente, o negócio da bioenergia só é possível face à forte injecção de fundos públicos. Há, pois, que questionar para que lado pende a Comissão Europeia? Os ecossistemas são para preservar e restaurar ou para destruir pelo recurso a cortes rasos de arvoredo? Querer os dois objectivos ao mesmo tempo é um paradoxo. Parece haver na Comissão um fenómeno de bipolaridade.

 

Têm sido vários os relatórios produzidos sobre os impactos ambientais, financeiros e sociais do uso em grande escala de biomassa florestal, essencialmente de troncos de árvores, para a produção de electricidade. É nessa sequência que um vasto conjunto de organizações e cidadãos assinala o dia 21 de Outubro como Dia Internacional de Acção sobre o uso em larga escala de biomassa para energia.

 

Esclarecimento:

 

No passado dia 10 de Setembro, foi publicado neste jornal um artigo intitulado “O paradoxo do carro eléctrico”, o qual gerou algumas apreensões entre alguns leitores. As apreensões incidiram sobre os dados estatísticos mencionados, concretamente sobre o peso do uso de biomassa, para a produção de energia, (apenas) no contexto das fontes tidas como “renováveis”. Neste contexto, reforça-se agora a alusão com um relatório do Centro Comum de Investigação (JRC), da Comissão Europeia, intitulado The use of Woody biomass for energy production in the EU, com uma cahamada de atenção para o subcapítulo 3.4. Woody biomass for bioenergy in the EU: a synopsis.

 

Em todo o caso, o que no artigo se pretendeu realçar é o paradoxo de destruição ambiental, decorrente do uso de biomassa para a produção de electricidade. Sem possibilidade de mensuração, parte dessa electricidade será utilizada por veículos com motorização eléctrica. Mesmo recorrendo a fontes de dados para o mix energético global, 5 a 10% que seja a utilização de biomassa florestal para a produção de electricidade, tal corresponde a muitos milhões de toneladas de arvoredo cortado anualmente. Os impactes desses cortes são registados na União Europeia, bem como fora das suas fronteiras e mesmo além-mar. Por isso o alerta deixado. Se no passado artigo se identifica uma consequência, o presente artigo incide na causa: o paradoxo da Estratégia da União Europeia para as Florestas face à inclusão da biomassa florestal para a produção de electricidade dentro da Directiva das Energias Renováveis.


Paulo Pimenta de Castro

Engenheiro silvicultor


Versão no Público, editada a 21 de Outubro de 2021.

O paradoxo do carro eléctrico


É importante contribuir para desmistificar o marketing, hoje com grande difusão, incluindo a partir de organizações de defesa do ambiente, sobre os veículos movidos a electricidade. Mais do que o veículo, há que incidir a atenção sobre a forma como é produzida e armazenada a energia eléctrica. Foquemo-nos aqui na produção da electricidade.

 

Para a produção de energia eléctrica é ainda hoje muito considerável o peso da queima de combustíveis fósseis, seja carvão, petróleo ou gás, com as emissões associadas e os impactes ambientais na sua extracção e distribuição. A nível global, a desejada redução do consumo destes combustíveis está longe de ser visível, especialmente no que respeita ao carvão. Por esta via, a opção por carro eléctrico tende a ser ambientalmente similar à opção por novas motorizações a combustíveis fósseis. O montante de investimento é que difere substancialmente.

 

Já no que respeita às fontes de energia classificadas como “renováveis”, importa ter presente que na União Europeia o recurso à queima de biomassa corresponde a cerca de 68% do total da energia obtida a partir destas fontes “verdes”. Cerca de 48% é proveniente da queima de material lenhoso, predominantemente de troncos de árvores. A produção de electricidade por esta via tem tido impacto devastador na perda de cobertura arbórea em extensas áreas florestais, quer no Canadá, nos Estados Unidos e na Rússia. Ou seja, o nosso “verde” tem um elevado custo ambiental, social e económico sobre populações de países terceiros. Na União, essa perda também é fortemente registada e inclui áreas da Rede Natura 2000, pensavam-se destinadas à conservação da natureza.

 

Entre os principais fornecedores de troncos de árvores para queima e produção de electricidade surge Portugal, seja na produção de pellets, essencialmente para exportação, seja na queima directa em centrais a biomassa profusamente espalhadas pelo território nacional. Não é de admirar que sejamos o segundo Estado Membro com a maior perda de áreas naturais e semi-naturais registada desde 1992. A procura de biomassa florestal para queima há muito que excede a oferta potencial. Daí resultem danos graves para os solos, o armazenamento de água e para a biodiversidade.

 

Este é o paradoxo que nos deve preocupar. Vão-se queimar árvores para movimentar veículos? O tema assume especial acuidade face às ameaças das alterações climáticas na bacia do Mediterrâneo.

 

Este negócio da queima da biomassa florestal é-nos vendida como medida para a redução dos incêndios. Através dele, dizem-nos, são extraídos os “resíduos” das florestas. Há, no entanto, que ter em conta que uma retirada em excesso destes “residuos” compromete o fundo de fertilidade dos solos. Em grande parte do país, os solos são já muito pobres em matéria orgânica. Por outro lado, os ditos “resíduos” comprometem significativamente a eficiência das caldeiras e encarece o processo de produção industrial. Já a queima de troncos obvia este último aspecto!

 

Há, ainda, que ter em conta que este negócio da queima de biomassa é ruinoso. Para ser viável carece de significativos apoios públicos. Estes decorrem de subsídios não reembolsáveis, benefícios fiscais e de tarifas acrescidas sobre os consumidores. Fica mais barato à sociedade o apoio directo aos agricultores e proprietários florestais para dar outro destino aos ditos “resíduos” florestais. É ainda ambiental e socialmente mais benéfico este apoio directo, seja na conservação dos ecossistemas, seja no combate ao êxodo rural, à desflorestação, ao avanço da desertificação.

 

A subsidiação desta indústria energética compromete ainda o emprego nas indústrias das madeiras e do mobiliário, as que têm maior peso em postos de trabalho no sector silvo-industrial nacional. Sendo o recurso lenhoso escasso, leva quem pagar melhor. Melhor pagará quem dispuser, para esse efeito, do suporte dos contribuintes e consumidores de energia. A concorrência nos mercados madeireiros fica (ainda mais) distorcida.

 

Assim, se pensar em adquirir um carro eléctrico, pense duas vezes. Qual o impacto da sua decisão em termos de conservação dos solos, dos recursos hídricos e da biodiversidade, mas também no emprego. Se a opção é não “morrer da doença”, há que não “morrer da cura”. Não raras vezes, o marketing transforma falsas soluções em “verdades”.

 

Se o Governo quer ter um país com menos incêndios, há várias alternativas mais credíveis do que a queima de biomassa em centrais termoeléctricas.


Paulo Pimenta de Castro

Engenheiro silvicultor


Versão no Público, editada a 10 de Setembro de 2021.