quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O faroeste é aqui, à porta de casa


Da serra da Lousã têm chegado relatos de angústia perante a realização de abate de arvoredo por corte raso, associado a invasão de propriedade privada e pública, esta última do Município da Lousã, em área da Reserva Ecológica Nacional (REN) e em Rede Natura 2000 (RN2000). Há indícios muito fortes da ocorrência de crimes de furto e de recorrente desobediência, neste último caso, face à notificação de embargo aos cortes emitida pelos proprietários dos terrenos em causa.


O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) no seu portal, alega que a operação de corte é legal, atendendo a que a empresa madeireira possui “mandato” emitido pelo sistema virtual do Instituto. Pelos vistos, tal “mandato”, intitulado manifesto de corte de árvores (MCA), permite o acesso a propriedade de terceiros, sem a permissão destes, e nele devassar e furtar o que se entender. De acordo com a legislação que aprova o regime do MCA, “os elementos da declaração obrigatória e das comunicações dos operadores [de corte de árvores] são estabelecidos por deliberação do conselho diretivo do ICNF…”. Ora, pelos vistos, a posse do terreno em que as operações se venham a desenrolar e o aval dos respectivos proprietários estão excluídos pelo conselho diretivo do ICNF dos “elementos de declaração obrigatória”.


Alega ainda o instituto público, investido como autoridade florestal nacional, que os povoamentos em causa foram “especificamente plantados para corte final”. Mas, quem define o ”especificamente”? Quem define o tipo de operações a realizar em corte de arvoredo? Em áreas da REN e RN2000, adequa-se o corte raso ou antes a execução de cortes salteados, tendo em consideração o perigo de erosão do solo e as suas consequências em termos hídricos, bem como na flora autóctone que se pretende conservar? Da justificação emitida pelo ICNF para este caso na serra da Lousã, parece estar em causa o poder de decisão dos legítimos proprietários no que respeita aos modelos de silvicultura a adotar na gestão das suas propriedades, atento o enquadramento legal estabelecido.


Sim, sabemos que o mercado se debate com falta de matéria prima lenhosa. Isto, face à desmesurada capacidade industrial licenciada pelos recentes Governos. Referimos, concretamente, ao mercado da queima de biomassa florestal para a produção de eletricidade “verde”, seja através da combustão em centrais termoelétricas, seja no fabrico de pellets de madeira esmagadoramente para exportação. Mas, não vale tudo! A perda de coberto arbóreo autóctone em Portugal tem sido demasiado significativa, com graves consequências sobre os solos, na capacidade de armazenamento de água, na conservação da biodiversidade, na criação de condições para a expansão territorial de espécies alienígenas e invasoras lenhosas, com crescentes impactes futuros nos incêndios florestais.


A empresa madeireira em causa, identificada pelo ICNF como sendo a sociedade por quotas Álvaro Matos Bandeira & Filhos, Lda., empresa com o CAE 02200, que compreende as atividades de árvores e operações complementares, produção de lenha e produção não industrial de carvão vegetal, está sediada no concelho de Góis e é detentora de certificação florestal pelo Forest Stewardship Council (FSC), correspondente à licença FSC-C010103, com o código: SGSCH-FM/COC-005081.


Perante o caso reportado pelos proprietários lesados, importa saber se a empresa que está a realizar estes cortes de árvores classificou a madeira extraída como detentora de certificação pelo sistema FSC. Se assim foi, há um risco elevado de toda a cadeia subsequente vir a estar seriamente comprometida. Caso a madeira extraída não tenha sido processada como certificada, o que se espera, a confirmação de caso de furto e desobediência corresponde a uma violação grosseira de um princípio básico do sistema FSC, ou seja, o cumprimento de toda a legislação aplicável à sua atividade económica, não apenas a de cariz florestal. Esta situação deve ser esclarecida com a máxima urgência pelo FSC Portugal e, eventualmente, pelo FSC Internacional. A confiança neste sistema tem sido recorrentemente posta em causa, com destaque para a tomada de posições da Greenpeace.


Os relatos do que se passa atualmente na serra da Lousã têm antecedentes. Em novembro de 2021, a Câmara Municipal da Lousã formalizou a denúncia de cortes rasos em áreas da REN e Rede Natura 2000. Já nessa ocasião o ICNF classificou o caso como “normal atividade florestal”, já que fora antecedida da emissão de MCA, o tal “mandato”. Curiosamente, na altura como agora esse instituto público emitiu apenas um Auto de Notícia tendo pr base “a abertura e o alargamento de caminhos, por configurar infração…” Nesta situação de 2021, terá sido a madeira extraída objeto de certificação FSC?


A imagem que fica deste caso na serra da Lousã é a do faroeste, onde reina a “lei” do mais esperto. Esperto esse que parece contar com o “apoio” de uma entidade pública e, esta última, com o aval governamental. O que se passa nesta região do centro de Portugal lembra casos ocorridos noutras partes do globo. Inimaginável é que ocorram à porta das nossas casas!



por Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Incêndios florestais: para que nos serve a AGIF?


De acordo com os dados provisórios, divulgados pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), até ao dia 15 de setembro foram registadas 7.097 ocorrências, resultando numa área ardida total de 33.003 hectares, dos quais 18.904 hectares ocorreram em povoamento florestal, correspondentes a 57,3% da área ardida total, 11.967 hectares foram registados em áreas de matos (36,3%) e 2.132 hectares em área agrícola (6,5%).


Estes registos de 2023 representam um acréscimo de mais de 239 ocorrências face aos dados provisórios a 15 de setembro de 2021, com mais 10.856 hectares ardidos em povoamento florestal. Ou seja, os valores provisórios de área ardida em povoamento florestal registados em 2023 superam a superfície do concelho de Lisboa, quando comparados com os valores de 2021. As diferenças são ainda superiores quando comparadas com os dados registados em 2014, em área ardida total e em povoamento florestal, apesar do menor número de ignições registadas em 2023. Podendo ser apontado com um “sucesso” político a campanha de 2023 face a 2022, o facto é que esse “sucesso” é pontual, fundamentalmente devido às condições meteorológicas. Não há “sucesso” quando comparado com 2021. É bom ter isso presente, para não haver surpresas em anos futuros.


Não se entende, face aos dados apontados, qual a vantagem da criação de mais um organismo público, especificamente para os incêndios florestais, estes últimos uma consequência de causas que o país não consegue atenuar e que se vêm agravando e irão agravar ainda mais face às alterações climáticas.


Esse novo organismo, a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), surge logo com um equívoco. Nos últimos anos tem ardido significativamente mais área de povoamento florestal do que de outras ocupações. Ou seja, a nova designação “rural” é cada vez mais “florestal”. Aliás, “florestal” é a designação utilizada pelos organismos da União Europeia. Por cá criou-se um embuste! Com que interesse?


Para além do equívoco, o que surge no plano mediático foi o ataque fora de época e desqualificado a cerca de metade dos efetivos dos meios de combate aos incêndios florestais, constituída pelos bombeiros. Curiosamente, esse ataque tem na base legislação aprovada aquando da maioria parlamentar PSD/CDS. Já lá vão quase oito anos de governação do PS. Discordando, não houve tempo para alterar essa legislação? Há vontade da atual maioria parlamentar em proceder a essa alteração ou essa é uma quimera do responsável máximo da AGIF? O que há a salientar é o ataque extemporâneo aos bombeiros. O mês de julho não se revela o mais indicado. Já o local parece ser inadequado numa primeira fase, mais ainda por parte de um responsável da Administração Pública. Talvez evidenciar uma proposta de alteração à lei devesse ocorrer no seio da tutela direta. Talvez devesse ser um membro do governo a despoletar essa eventual vontade junto do Parlamento, não um dirigente da Administração. Mas, parece que o governo tem dificuldade em controlar os ímpetos dos dirigentes da Administração. Este não foi caso único!


(Foto: RTP)

Mas, o que tem produzido a AGIF? Planos, com múltiplos objetivos e uma chusma de metas.  Desde 1998 que se assiste a este paradigma, logo com o Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 27/99, de 8 de abril. Antes ainda com a Lei de Bases da Política Florestal, Lei n.º 33/96, de 17 de agosto, aprovada por unanimidade pela Assembleia da República. Entre outros, temos ainda em vigor a Estratégia Nacional para as Florestas, de 2007 e atualizada em 2015 pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 6-B/2015, de 4 de fevereiro. Todos planos de “boas intenções”, com objetivos louváveis, múltiplas metas, constantes incumprimentos. De projetos piloto não reza a história.


No final, vai vingando a vontade em expandir a área de plantações de eucalipto, cuja indústria tem sido a maior privilegiada com os insucessos da política florestal em Portugal. Aliás, a própria existência da AGIF pode-se entender no âmbito das portas giratórias existentes entre as governações e as celuloses. O atual responsável da AGIF é um protagonista chave dessas portas giratórias, conforme descrito, entre outros, no livro “Portugal em Chamas - Como Resgatar as Florestas”, com pré-publicação pelo Público.



Por Paulo Pimenta de Castro


Publicado no suplemento Azul do jornal Público a 2 de outubro de 2023