segunda-feira, 27 de novembro de 2023

António Costa e as florestas

Numa sucinta retrospectiva sobre o papel do governante António Costa em matéria de política florestal, iniciemos pelo período em que assumiu o cargo de ministro da Administração Interna, de 2005 e 2007. Nesse período teve responsabilidade no desmantelamento do corpo de guardas e mestres florestais. As ações de fiscalização, embora não constituíssem a atribuição única desta força, incomodam alguns negócios. Esse desmantelamento ocorreu em clara violação do disposto a propósito na Lei de Bases da Política Florestal. Mas, o que é que isso interessa? Essa Lei está claramente caduca, atentos aos inúmeros atropelos de que tem sido vítima. Aliás, na altura da sua aprovação, em 1996, argumentava-se que o facto de ter sido por unanimidade resultaria de uma de duas circunstâncias: dos partidos políticos com assento parlamentar à época terem considerado as florestas como um desígnio nacional; ou, pelo contrário, do objeto da lei não merecer por parte da maioria destes a importância para criar quezílias político-partidárias. Passado mais de um quarto de século, constata-se globalmente ter vingado a segunda.



Mata Nacional de Leiria, a 22 de outubro de 2017

Já assumido o cargo de primeiro ministro, desde finais de 2015, os factos até agora registados evidenciam os efeitos devastadores da sua governação:

  • Persistiu a tendência crescente da área ardida em Portugal. Todavia, ao contrário do que até então se registrava, as áreas ardidas em designados povoamentos florestais superaram consecutivamente as áreas ardidas com outras ocupações, nomeadamente, matos e pastagens. Curiosamente, foi alterada a designação de incêndios florestais por “incêndios rurais”. Mero engodo! É hoje claramente majoritária a incidência em espaços tidos como florestais (plantações incluídas).

  • Pela primeira vez, em três anos consecutivos, Portugal registou a maior área ardida absoluta na União Europeia. Este nefasto primeiro lugar no pódio já tinha sido registado antes, nunca em dois anos consecutivos, muito menos em três (2016, 2017, 2018). Igualmente, nunca havia sido registrado, num só ano, um tão horrível número de vítimas mortais. Mais de uma centena, em 2017.

  • As “medidas” posteriores, assumidas a pretexto da prevenção de incêndios florestais, constituíram tão só um ato de desresponsabilização política e de dissipação de responsabilidades por centenas de milhares de famílias enquanto proprietárias em espaço rural. Facto é que tais “medidas”, no que respeita a faixas de gestão de combustíveis, como ainda em vigor, tiveram um contributo determinante para a expansão pelo território de espécies lenhosas invasoras, com acrescido perigo em futuros incêndios florestais.

  • No plano económico, de acordo com os dados até agora disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística, a partir de 2016 voltou a registar-se uma queda no valor acrescentado bruto (VAB) da silvicultura face ao valor acrescentado bruto nacional. Se entre 2009 e 2015 se evidenciou uma muito ligeira subida, após o descalabro ocorrido desde o ano 2000, atualmente o rácio retrocedeu ao valor de 2008.

  • Ainda no plano económico, constata-se um acréscimo percentual na produção de madeira para triturar, associada a produtos de menor valor acrescentado, bem como de menor ciclo de vida, ou seja, de mais curto período de sequestro do carbono antes armazenado pelas árvores. Assim é com o papel e com as pellets de madeira, por exemplo. Se no período 2000-2004 a produção de madeira para triturar representava 27% da produção florestal mensurada, em 2021 os dados provisórios do INE apontam para 41%. Ou seja, a silvicultura gera hoje menos valor e os bens que são produzidos devolvem mais rapidamente à atmosfera o carbono antes sequestrado no crescimento do arvoredo. Pelo contrário, tem-se assistido a um preocupante decréscimo na produção de cortiça e a um sector de produção de madeira para serração muito dependente de importações. Estes últimos, para além de gerarem bens de maior valor acrescentado, estão ainda associados a bens de ciclo longo de sequestro de carbono.

  • Nos últimos oito anos a pressão sobre o arvoredo aumentou significativamente, associado a negócios rotulados como “verdes”. Desde 2016 foi registado um nível de licenciamentos industriais, sobretudo no sector energético, que, irresponsavelmente, tem vindo a criar um forte impacto sobre o coberto arbóreo. A pressão do sector energético, para queima directa, produção de pellets de madeira e de lenhas, tem dizimado sobretudo arvoredo de espécies autóctones, já de si vítimas, com raras exceções, de significativa contração de área no nosso país. Nem as Matas Nacionais, nem as árvores urbanas estiveram a salvo desta pressão. Apesar da tendência crescente da área ardida em povoamentos florestais e do aumento desta pressão para a produção de energia, que crescem em simultâneo, foi assumida a decisão de apenas realizar o próximo Inventário Florestal Nacional em 2025. Ou seja, só deste conheceremos os danos. Que conveniente!

  • Associado aos espaços florestais, ao nível da política de conservação da natureza, a governação tem apostado em baloiços, passadiços e num modelo de cogestão de áreas protegidas. Infelizmente, a conservação da natureza não é compatível com o aumento da pressão humana nestas áreas. Se desde 1992, segundo a OCDE, Portugal é o segundo país da União Europeia em termos de perda relativa de áreas naturais, dificilmente será de esperar que os governos liderados por António Costa tenham contribuído para inverter essa perda. Muito pelo contrário!

  • Em matéria de ocupação do território por plantações de eucalipto, as medidas de política ou a sua ausência falam por si. Depois de um propagandeado ataque à “lei da liberalização dos eucaliptos”, do tempo de Assunção Cristas, o facto é que no consulado de Capoulas Santos foi “licenciada” maior expansão de área destas plantações do que no tempo da sua antecessora. Isto, no que respeita a novas plantações autorizadas no âmbito dessa “lei da liberalização dos eucaliptos”. A paragem nessa expansão legal só foi interrompida após os incêndios de 2017. Certo é que perante o elevado défice de fiscalização, voltamos ao desmantelamento do corpo de guardas e mestres florestais, a expansão ilegal com esta espécie exótica e invasora pós-incêndio pulula por este país. Já no consulado de Matos Fernandes foram alterados os limites máximos das áreas de plantações de eucalipto por concelho. Ou seja, a indústria papeleira, hoje com forte presença no sector energético, tem vivido dias felizes sob a governação de António Costa.

É difícil, senão impossível, apontar algo de positivo em matéria de política florestal na presença ou chefia de governos pelo doutor António Costa. Bom, foram produzidos muitos planos, uns sobre os outros, ao sabor da mudança de secretários de Estado e de ministros.

Vejamos agora o que nos trará o pós 10 de março. Certo é que temos hoje um vasto território ao abandono, onde o perigo para as populações humanas aumentou significativamente, onde a perda de biodiversidade se acentuou, bem como a perda de solos, onde a seca tem sido uma constante, a par do aumento da pressão para o corte do arvoredo autóctone. Nesta situação, não se agoira um futuro próspero face às várias crises já em curso e as anunciadas.


Por Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor
Artigo original publicado no suplemento Azul do jornal Público a 24 de novembro de 2023.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O faroeste é aqui, à porta de casa


Da serra da Lousã têm chegado relatos de angústia perante a realização de abate de arvoredo por corte raso, associado a invasão de propriedade privada e pública, esta última do Município da Lousã, em área da Reserva Ecológica Nacional (REN) e em Rede Natura 2000 (RN2000). Há indícios muito fortes da ocorrência de crimes de furto e de recorrente desobediência, neste último caso, face à notificação de embargo aos cortes emitida pelos proprietários dos terrenos em causa.


O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) no seu portal, alega que a operação de corte é legal, atendendo a que a empresa madeireira possui “mandato” emitido pelo sistema virtual do Instituto. Pelos vistos, tal “mandato”, intitulado manifesto de corte de árvores (MCA), permite o acesso a propriedade de terceiros, sem a permissão destes, e nele devassar e furtar o que se entender. De acordo com a legislação que aprova o regime do MCA, “os elementos da declaração obrigatória e das comunicações dos operadores [de corte de árvores] são estabelecidos por deliberação do conselho diretivo do ICNF…”. Ora, pelos vistos, a posse do terreno em que as operações se venham a desenrolar e o aval dos respectivos proprietários estão excluídos pelo conselho diretivo do ICNF dos “elementos de declaração obrigatória”.


Alega ainda o instituto público, investido como autoridade florestal nacional, que os povoamentos em causa foram “especificamente plantados para corte final”. Mas, quem define o ”especificamente”? Quem define o tipo de operações a realizar em corte de arvoredo? Em áreas da REN e RN2000, adequa-se o corte raso ou antes a execução de cortes salteados, tendo em consideração o perigo de erosão do solo e as suas consequências em termos hídricos, bem como na flora autóctone que se pretende conservar? Da justificação emitida pelo ICNF para este caso na serra da Lousã, parece estar em causa o poder de decisão dos legítimos proprietários no que respeita aos modelos de silvicultura a adotar na gestão das suas propriedades, atento o enquadramento legal estabelecido.


Sim, sabemos que o mercado se debate com falta de matéria prima lenhosa. Isto, face à desmesurada capacidade industrial licenciada pelos recentes Governos. Referimos, concretamente, ao mercado da queima de biomassa florestal para a produção de eletricidade “verde”, seja através da combustão em centrais termoelétricas, seja no fabrico de pellets de madeira esmagadoramente para exportação. Mas, não vale tudo! A perda de coberto arbóreo autóctone em Portugal tem sido demasiado significativa, com graves consequências sobre os solos, na capacidade de armazenamento de água, na conservação da biodiversidade, na criação de condições para a expansão territorial de espécies alienígenas e invasoras lenhosas, com crescentes impactes futuros nos incêndios florestais.


A empresa madeireira em causa, identificada pelo ICNF como sendo a sociedade por quotas Álvaro Matos Bandeira & Filhos, Lda., empresa com o CAE 02200, que compreende as atividades de árvores e operações complementares, produção de lenha e produção não industrial de carvão vegetal, está sediada no concelho de Góis e é detentora de certificação florestal pelo Forest Stewardship Council (FSC), correspondente à licença FSC-C010103, com o código: SGSCH-FM/COC-005081.


Perante o caso reportado pelos proprietários lesados, importa saber se a empresa que está a realizar estes cortes de árvores classificou a madeira extraída como detentora de certificação pelo sistema FSC. Se assim foi, há um risco elevado de toda a cadeia subsequente vir a estar seriamente comprometida. Caso a madeira extraída não tenha sido processada como certificada, o que se espera, a confirmação de caso de furto e desobediência corresponde a uma violação grosseira de um princípio básico do sistema FSC, ou seja, o cumprimento de toda a legislação aplicável à sua atividade económica, não apenas a de cariz florestal. Esta situação deve ser esclarecida com a máxima urgência pelo FSC Portugal e, eventualmente, pelo FSC Internacional. A confiança neste sistema tem sido recorrentemente posta em causa, com destaque para a tomada de posições da Greenpeace.


Os relatos do que se passa atualmente na serra da Lousã têm antecedentes. Em novembro de 2021, a Câmara Municipal da Lousã formalizou a denúncia de cortes rasos em áreas da REN e Rede Natura 2000. Já nessa ocasião o ICNF classificou o caso como “normal atividade florestal”, já que fora antecedida da emissão de MCA, o tal “mandato”. Curiosamente, na altura como agora esse instituto público emitiu apenas um Auto de Notícia tendo pr base “a abertura e o alargamento de caminhos, por configurar infração…” Nesta situação de 2021, terá sido a madeira extraída objeto de certificação FSC?


A imagem que fica deste caso na serra da Lousã é a do faroeste, onde reina a “lei” do mais esperto. Esperto esse que parece contar com o “apoio” de uma entidade pública e, esta última, com o aval governamental. O que se passa nesta região do centro de Portugal lembra casos ocorridos noutras partes do globo. Inimaginável é que ocorram à porta das nossas casas!



por Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Incêndios florestais: para que nos serve a AGIF?


De acordo com os dados provisórios, divulgados pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), até ao dia 15 de setembro foram registadas 7.097 ocorrências, resultando numa área ardida total de 33.003 hectares, dos quais 18.904 hectares ocorreram em povoamento florestal, correspondentes a 57,3% da área ardida total, 11.967 hectares foram registados em áreas de matos (36,3%) e 2.132 hectares em área agrícola (6,5%).


Estes registos de 2023 representam um acréscimo de mais de 239 ocorrências face aos dados provisórios a 15 de setembro de 2021, com mais 10.856 hectares ardidos em povoamento florestal. Ou seja, os valores provisórios de área ardida em povoamento florestal registados em 2023 superam a superfície do concelho de Lisboa, quando comparados com os valores de 2021. As diferenças são ainda superiores quando comparadas com os dados registados em 2014, em área ardida total e em povoamento florestal, apesar do menor número de ignições registadas em 2023. Podendo ser apontado com um “sucesso” político a campanha de 2023 face a 2022, o facto é que esse “sucesso” é pontual, fundamentalmente devido às condições meteorológicas. Não há “sucesso” quando comparado com 2021. É bom ter isso presente, para não haver surpresas em anos futuros.


Não se entende, face aos dados apontados, qual a vantagem da criação de mais um organismo público, especificamente para os incêndios florestais, estes últimos uma consequência de causas que o país não consegue atenuar e que se vêm agravando e irão agravar ainda mais face às alterações climáticas.


Esse novo organismo, a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), surge logo com um equívoco. Nos últimos anos tem ardido significativamente mais área de povoamento florestal do que de outras ocupações. Ou seja, a nova designação “rural” é cada vez mais “florestal”. Aliás, “florestal” é a designação utilizada pelos organismos da União Europeia. Por cá criou-se um embuste! Com que interesse?


Para além do equívoco, o que surge no plano mediático foi o ataque fora de época e desqualificado a cerca de metade dos efetivos dos meios de combate aos incêndios florestais, constituída pelos bombeiros. Curiosamente, esse ataque tem na base legislação aprovada aquando da maioria parlamentar PSD/CDS. Já lá vão quase oito anos de governação do PS. Discordando, não houve tempo para alterar essa legislação? Há vontade da atual maioria parlamentar em proceder a essa alteração ou essa é uma quimera do responsável máximo da AGIF? O que há a salientar é o ataque extemporâneo aos bombeiros. O mês de julho não se revela o mais indicado. Já o local parece ser inadequado numa primeira fase, mais ainda por parte de um responsável da Administração Pública. Talvez evidenciar uma proposta de alteração à lei devesse ocorrer no seio da tutela direta. Talvez devesse ser um membro do governo a despoletar essa eventual vontade junto do Parlamento, não um dirigente da Administração. Mas, parece que o governo tem dificuldade em controlar os ímpetos dos dirigentes da Administração. Este não foi caso único!


(Foto: RTP)

Mas, o que tem produzido a AGIF? Planos, com múltiplos objetivos e uma chusma de metas.  Desde 1998 que se assiste a este paradigma, logo com o Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 27/99, de 8 de abril. Antes ainda com a Lei de Bases da Política Florestal, Lei n.º 33/96, de 17 de agosto, aprovada por unanimidade pela Assembleia da República. Entre outros, temos ainda em vigor a Estratégia Nacional para as Florestas, de 2007 e atualizada em 2015 pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 6-B/2015, de 4 de fevereiro. Todos planos de “boas intenções”, com objetivos louváveis, múltiplas metas, constantes incumprimentos. De projetos piloto não reza a história.


No final, vai vingando a vontade em expandir a área de plantações de eucalipto, cuja indústria tem sido a maior privilegiada com os insucessos da política florestal em Portugal. Aliás, a própria existência da AGIF pode-se entender no âmbito das portas giratórias existentes entre as governações e as celuloses. O atual responsável da AGIF é um protagonista chave dessas portas giratórias, conforme descrito, entre outros, no livro “Portugal em Chamas - Como Resgatar as Florestas”, com pré-publicação pelo Público.



Por Paulo Pimenta de Castro


Publicado no suplemento Azul do jornal Público a 2 de outubro de 2023


sábado, 15 de julho de 2023

Pedrógão Grande e a Lei de Restauração da Natureza

Árvore morta e caída naturalmente em espaço florestal, a servir de abrigo e substrato a outros seres vivos


Num recente artigo de opinião, intitulado “Cortinas de fumo de uma lei incendiária”, da autoria da eurodeputada Lídia Pereira, publicado neste jornal, é invocada de modo ultrajante a dor causada pelo grande incêndio florestal de junho de 2017 na região de Pedrógão Grande para sustentar a oposição a uma proposta legislativa europeia de restauro da natureza.

Não é objeto do presente artigo elaborar sobre a importância dessa proposta legislativa, já que, também neste jornal, a mesma foi enunciada, com suporte técnico e científico, num artigo de opinião intitulado “A madeira morta é essencial para o restauro da natureza na Europa, e também em Portugal”, assinado pelo biólogo João Gonçalo Soutinho.

O que importa aqui realçar é que o que vitimou dezenas de pedroguenses em junho de 2017 não foram árvores mortas em pé ou caídas no solo. Em espaço dito florestal, foram sim árvores vivas, que constituíam, em teoria silvícola, povoamentos puros, ou seja, de uma só espécie; regulares, ou seja, de uma mesma idade; na maior parte explorados em regime de talhadia. Ou seja, claramente um sistema artificial. Nada do que se encontrava nessa área ardida em Pedrógão Grande tinha a ver com árvores dispersas vítimas de morte natural ou induzida nessa árvore pelo ataque localizado de agentes bióticos, ou por agentes bióticos, como por exemplo tempestades, localizadas em área naturais ou seminaturais, a servir de abrigo ou de substrato para um conjunto vasto de seres vivos. Ou seja, um micro “hotspot” de biodiversidade. O resultado de uma operação de restauro da natureza é exatamente o oposto da ocupação que provocou a morte de mais de uma centena de vidas humanas em 2017. Quando muito, no plano silvícola, uma aproximação a uma ação de restauro pode ser feita com a instalação de povoamentos mistos, de mais de uma espécie, fundamentalmente de espécies autóctones e arqueófitas, irregulares e jardinados, ou seja, de diferentes idades e que possa admitir a aproveitamento de madeira, mas em cortes pé a pé, isoladamente. O restauro da natureza não é compatível com operações de corte raso, os que acabam por deixar no solo grandes quantidades de sobrantes não estilhaçados, decorrentes de bicadas ou ramos, esses sim a oferecer maior perigo de incêndio. O mesmo acontece com pilhas de madeira cortada, empilhada e abandonada em espaço florestal, incluindo em Matas Nacionais.


Arvoredo abatido e abandonado em plantação de eucalipto em Pedrógão Grande, junto à barragem da Bouçã, este a fazer aumentar significativamente o perigo de propagação de futuros incêndios.


Se o objetivo do artigo assinado pela eurodeputada era atacar o PS, perdeu uma oportunidade de ouro de o fazer seriamente. De facto, o que o PS está a defender, e bem, no Parlamento Europeu é o oposto da sua prática governativa em Portugal. Por cá, tem promovido a sobre-exploração dos recursos naturais, designadamente dos florestais e em particular de arvoredo de espécies autóctones. A própria lei das “limpezas” das “faixas de gestão de combustíveis” é um paradoxo. Na maior parte dos casos de nada serve no que respeita à progressão dos incêndios, a não ser promover a expansão de espécies exóticas e invasoras, agravando incêndios futuros. O próprio Instituto da Conservação da Natureza e das Florestais tem, há mais de um ano, uma proposta de alteração a essa lei e que tarda em ver a luz do dia. Percebe-se, as “limpezas”, por um lado, disponibilizam uma oferta coerciva de material lenhoso à indústria, sobretudo ao sector energético, e sabe-se quem domina a produção de eletricidade através da queima de biomassa florestal primária, por outro, serviu para desresponsabilizar o governo das opções tomadas, sobretudo em outubro de 2017, com a permissão extemporânea das queimas e queimadas e a redução abrupta dos meios de combate perante o aviso da aproximação de um fenómeno meteorológico extremo, diluindo essa responsabilidade por centenas de milhares de proprietários rústicos.

Quando a eurodeputada refere, no contexto do seu artigo, “O PSD já alertou!” está a referir-se a que PSD. Não é certamente àquele que partilhou a governação com o Arq. Gonçalo Ribeiro Tellles, que com a criação da Reserva Ecológica Nacional, mais do que promover o restauro, procurou proteger os espaços naturais e seminaturais em Portugal. Infelizmente, dados da OCDE, no que respeita à biodiversidade, apontam Portugal como o segundo país da União Europeia com a segunda maior perda de áreas naturais e seminaturais ocorrida desde 1992, ano da Conferência do Rio. Não será também ao PSD de Carlos Pimenta que devolveu à natureza áreas do território ocupadas pela libertinagem pós-25 de abril. Nem será, certamente, ao PSD da autarquia cuja população se opôs a ser igual vítima dos incêndios florestais como ocorre em demasiados municípios do Centro de Portugal.

Percebe-se a intenção da eurodeputada em defender, em modo incendiário, os interesses do lóbi silvo-industrial, particularmente aquele que suporta a sua atividade em plantações, necessariamente de composição pura e regular, exploradas sobretudo em regime de talhadia. Bom, isso em teoria! Na prática, o que tem promovido é algo que não tem propriamente por base um conceito silvícola, mas que alguns especialistas apelidam de “sucata florestal”, plantações abandonadas ou mal geridas. Anotou-se a oposição deste sector a ações que envolvam a redução do perigo de incêndio na região de Pedrógão Grande, através do reordenamento e gestão da paisagem. Em todo o caso, não vale tudo! Muito menos em recorrer a um atroz exercício de desonestidade intelectual.

Importa por último mencionar que a proposta de Comissão Europeia, da lei de restauro da natureza, conta com o apoio de uma carta subscrita por mais de 3.000 cientistas, cerca de uma centena a partir de Portugal.


Paulo Pimenta de Castro

Engenheiro silvicultor

(publicado a 12 de julho no suplemento Azul do jornal Público)

 


sábado, 24 de junho de 2023

Os mistérios da Mata dos Medos, um caso para Hercule Poirot

  

No passado dia 14 de janeiro foi publicado neste jornal um artigo de opinião intitulado “ICNF, facilitador de negócios?”. O mesmo serviu de substrato para um outro artigo, este da autoria do presidente do Conselho Diretivo do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), publicado também neste jornal a 17 do mesmo mês, sob o título “Os Miseráveis, ou como romancear a realidade, mas com base na mentira”. Na sequência de ambos, entendeu o Público realizar uma visita à Mata Nacional dos Medos, Reserva Botânica, parte integrante da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica. Dessa visita resultou um artigo intitulado “A gestão da Mata dos Medos é polémica e a culpa é do corte dos pinheiros”, publicado no suplementos Azul, a 28 de Janeiro. É sobre este dois últimos que incide o presente artigo.

No artigo da autoria do dirigente do organismo público, pressupõe que o teor do mesmo tenha respaldo por parte da tutela. Sobre esse teor importa destacar à partida três tentativas de confundir a opinião pública.

Assim, sobre o escrutínio da operação na Mata, muito está para esclarecer. Concretamente, no que respeita ao Contrato Público N.º 123/2019/ICNF. O mais relevante está por escrutinar: quais as quantidades de toros e estilha de madeira de pinheiro manso que foram extraídas da Mata Nacional, designados pelos responsáveis do ICNF por “remanescente”? Qual a receita decorrente e a que título foi essa receita, suportada em bem público, cedida a privados, de acordo com declarações prestadas ao Público pelo diretor regional do ICNF? Aliás, a não ter havido retorno económico para o ICNF perspetiva-se uma contradição face à informação prestada pelo Governo ao Parlamento, como decorre da leitura do Ofício n.º 1068/2022, Proc. 32.69.02, do Gabinete do Ministro do Ambiente e da Ação Climática.

Por outro lado, alega o dirigente máximo do ICNF do reconhecimento da população e das instituições locais da mais-valia do trabalho público para a qualificação e conservação do espaço. Não esclarece que decorreu em simultâneo a execução de dois contratos públicos, um dos quais para a instalação de passadiços. Essa outra operação é muito discutível, mas não é sobre essa operação que versou o artigo de 14 de janeiro. É sim sobre o contrato acima identificado, o qual motivou vários protestos públicos a nível local, incluindo uma posterior manifestação em Lisboa, na Praça de Luís de Camões. Não confundamos! Esses protestos foram secundados por uma tomada de posição de várias ONG, num âmbito mais alargado, visando o ICNF e não apenas sobre a gestão da Mata Nacional dos Medos.

Alega ainda o autor do artigo de 17 de janeiro motivos de natureza fitossanitária para justificar o “remanescente”, não inscrito em projeto submetido ao POSEUR, para financiamento comunitário, nem previsto em Contrato Público. Todavia, é reconhecido no artigo do Azul, de 28 de janeiro, por um outro responsável do ICNF, a inexistência de casos da doença da murchidão do pinheiro, que causou desde o final dos anos 90 do século passado grandes e graves prejuízos sociais e económicos na fileira silvo-industrial do pinheiro-bravo. Importa ser preciso quanto às espécies de pinheiros.

Tendo por base o teor do artigo de opinião da autoria do dirigente máximo do ICNF, foi requerida a este organismo público a consulta da documentação administrativa referente às operações desenvolvidas no âmbito das Ações 1 e 2, da Medida A, da Secção IV (pág. 21) do Contrato N.º 123/2019/ICNF, concretamente:

1. Do relatório da marcação de arvoredo, de pinheiro manso, a submeter a operações de desbaste e abertura de clareiras, “correspondente a uma redução de cerca de 30% a 40%, (variável de acordo com os locais)”, onde possa ser identificado o número de árvores e em cada uma delas os parâmetros dendrométricos da opção pelo abate segundo “o critério” de seleção “pé a pé, removendo as árvores malconformadas, dominadas, debilitadas ou enfraquecidas”;

2. Do Relatório que enquadre o diferencial entre o previsto nas ações do contrato, acima identificado, e o executado de acordo com o “fundamento para decidir não incorporar a totalidade do material estilhaçado”, identificando o volume de material lenhoso de pinheiro manso não incorporado, sendo que existem evidencias de saída de material torado;

3. Da documentação prevista na legislação que mensure “o remanescente encaminhado para destino autorizado (cumprindo as normas fitossanitárias aplicáveis)”, com identificação desse local de destino;

4. Do relatório fitossanitário que fundamente o abate de arvoredo de pinheiro manso e o seu “encaminhado para destino autorizado”;

5. Do relatórios de avaliação dos riscos por agente abiótico e agentes bióticos na Mata Nacional dos Medos;

6. Do documento justificativo entre a variação da área de intervenção identificada no artigo publicado no jornal e o identificado no ponto 2 do Ofício n.º 1068/2022, Proc. 32.69.02, do Gabinete do Ministro do Ambiente e da Ação Climática;

7. Da documentação que identifique o volume de madeira com aproveitamento económico cujo valor tenha revertido para o orçamento desse Instituto, de acordo com o ponto 3 do citado Ofício enviado do Gabinete do Ministro ao Parlamento.

A ausência de resposta ao requerimento, por parte do ICNF, deu origem a uma queixa junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), formalizada a 14 de fevereiro. A esta data ainda não houve emissão de parecer referente à possibilidade de consulta a referida documentação. Já lá vão três meses e meio. Sob gestão pública é inaceitável a inexistência no ICNF da documentação cuja consulta foi requerida.

Na sequência do artigo do Azul, de 17 de janeiro, face às declarações de outro responsável do ICNF, foi reforçado em novo requerimento de consulta à seguinte documentação de carácter obrigatório:

- Manifestos de corte de exploração florestal, em número de seis, do “remanescente” que saiu da Mata na sequência do contrato supramencionado e que terão sido transportados para “destinos autorizados, localizados na zona de Setúbal, Poceirão e Montijo.”

A ausência de resposta ao requerido deu origem a nova queixa junto da CADA. As duas queixas originaram dois processos, posteriormente fundidos num só. Todavia, ainda sem resultados práticos. O processo unificado está “em estudo”. O caso não deixa de suscitar grande curiosidade e também uma enorme preocupação, designadamente, quanto à gestão do Património do Estado sob a responsabilidade do ICNF.


Madeira empilhada de pinheiro manso abandonada plo ICNF na Mata: situação a 31 de maio de 2023

Sobre uma pilha de madeira deixada em plena Mata, junto ao Parque de Merendas da Aroeira, possivelmente para simular uma anunciada venda em hasta pública, passados quase ano e meio a mesma permanece no local. Foi mencionada ao Público a sua retirada até antes de maio. Possivelmente, de 2024! A “tocha” continua lá. Será a aguardar um fósforo e suscitar um posterior abate de mais pinheiros mansos, no caso, ardidos? Toda a especulação é possível perante tamanha incúria, designemos assim, por parte dos dirigentes do organismo público e respetiva tutela política. Há património imobiliário privado contíguo a esta zona da Mata, esperemos que com seguro contra incêndio florestal. As seguradoras que se cuidem!

Como refere ao Público um dos responsáveis do ICNF: “Claramente temos de aprender a comunicar de uma forma mais eficaz a necessidade de intervenções”. Seguramente que sim! Muito especialmente em toneladas, metros cúbicos e euros gerados a partir do Património Público e de outros territórios sob gestão do ICNF. Não é suficiente a indicação do número de árvores envolvidas em abate. Os seus diâmetros e as alturas variam, logo o peso e o volume são distintos, assim como as receitas caso a caso e de quem delas usufrui. Neste último caso, a que título foi esse património público cedido, pelo que se lê, a título gratuito, a privados? Um caso para a Autoridade Tributária?

Ao contrário da leitura sugerida pelo dirigente público no seu artigo de 17 de janeiro, o caso dos mistérios da Mata Nacional dos Medos sugere um romance policial de Agatha Christie. Quiçá, um caso para o inspetor Hercule Poirot?

 

Nota de esclarecimento:

Os artigos de opinião geram comentários vários, concretamente por leitores do Público. Os mesmos são tidos em conta. Por esse motivo a presente nota de esclarecimento sobre a designada “Lei da liberalização dos eucaliptos”. A autoria desta designação, com uma ou outra nuance, relativamente ao Decreto-lei n.º 96/2013, não pode ser atribuída aos autores. Ela consta em vários documento de cariz político, designadamente em programas eleitorais e de Governo, bem como em discursos de governantes. Estão os autores do artigo de 14 de Janeiro cientes do conteúdo do diploma em questão, das suas múltiplas alterações, do anúncio político quanto à sua revogação, nunca concretizada, bem como das notas informativas publicadas pelo ICNF referentes às acções de arborização e rearborização, antes e depois da proibição, com “alçapões” legais, de novas plantações de eucalipto. Um dos autores acompanha regularmente situações de ilegalidade associadas à expansão da área com plantações com esta espécie exótica, incluindo em acções de rearborização patrocinadas pela associação da indústria papeleira, antes e depois da alteração da designação desta entidade. É recorrente a tentativa de descredibilização a que os autores, estes em concreto, estão sujeitos. Tempo perdido para quem o tenta, esperamos que não seja o caso.


(Artigo publicado no suplemento Azul do jornal Público a 20 de junho de 2023)

domingo, 26 de março de 2023

As árvores acendem lâmpadas? Sim, queimando-as nas celuloses!

 

Um recente relatório, tornado público em Português e Inglês no Dia Internacional da Floresta, aponta os impactos da queima de biomassa florestal para a produção de eletricidade, em particular quando essa queima ocorre nas fábricas da indústria de celulose e papel.


De acordo com o relatório, produzido pela Biofuelwatch, organização não governamental com atividade no Reino Unido e nos EUA, e que contou com os apoios da Environmental Paper Network, da Quercus, Associação Nacional da Conservação da Natureza, da Iris, Associação Nacional de Ambiente, e da Acréscimo, Associação de Promoção ao Investimento Florestal, o sector das celuloses tem vindo a realizar pesados investimentos na produção de eletricidade a partir da queima de biomassa florestal, originando lucros recorde na produção de quase 80% da eletricidade gerada dessa queima e pelo controlo de mais de metade da capacidade instalada em centrais a biomassa só para geração de eletricidade.

Os investimentos mais significativos são a central termoelétrica a biomassa de 34,5MW da Altri-Greenvolt na Figueira da Foz, e a caldeira de biomassa vizinha da  Navigator, que substituiu uma central de cogeração (produção combinada de calor e eletricidade) a gás fóssil. Ambas dependem de grandes volumes de biomassa lenhosa e foram financiadas como desenvolvimentos "verdes".

O sector da celulose afirma que a queima de biomassa lenhosa ajuda-o a cumprir os seus objetivos climáticos e a reduzir o risco de incêndios florestais. Contudo, a eletricidade produzida a partir da queima de biomassa florestal resulta frequentemente em maiores emissões de gases de efeito estufa e de poluição do que os equivalentes da queima de combustíveis fósseis. Por outro lado, nos últimos anos a tendência de área ardida em incêndios rurais só aumentou, particularmente nas áreas de povoamentos florestais e à medida que a capacidade elétrica a partir da queima de biomassa cresceu. Com efeito, para a “bio”energia, a madeira ardida apresenta duas vantagens significativas: por um lado, o preço pago à produção sofre um brutal decréscimo; por outro, o teor de humidade dos ardidos baixa substancialmente favorecendo a sua queima posterior para energia.

No total, seis centrais termoelétricas a biomassa dedicada e cinco centrais de cogeração associadas à indústria de celulose, de acordo com o relatório, queimam cerca de 2,8 milhões de toneladas de biomassa lenhosa por ano, mais do que qualquer outro sector. Quase dois terços deste valor provêm diretamente da queima de sobrantes das operações de exploração florestal. As empresas de pasta e papel afirmam que apenas os “resíduos” florestais e subprodutos industriais são queimados nas suas centrais elétricas, mas muito mais biomassa lenhosa é queimada ou usada anualmente pelas indústrias de energia a biomassa e de produção de pellets de madeira do que poderia estar disponível como genuína biomassa residual, tal como definida na legislação portuguesa.

Já antes destes recentes investimentos, um outro relatório, produzido em 2013 por um Grupo de Trabalho criado no seio da Assembleia da Republica, manifestava preocupação face à capacidade industrial então instalada para a queima de biomassa florestal e produção de pellets de madeira, tendo em conta o estimado para a disponibilidade anual de biomassa florestal residual, a decorrente das operações de silvicultura, incluindo limpezas, desramações, podas e desbaste, e de exploração florestal, no caso, as bicadas e ramos resultantes do abate de arvoredo.

A extração excessiva de biomassa em espaços florestais tem impacto na redução do coberto arbóreo, contribui para o empobrecimento dos solos, designadamente em teor de matéria orgânica, provoca a decorrente perda de biodiversidade e aumenta o risco de avanço de processo de desertificação e de despovoamento.

As centrais de queima de biomassa precisam de muito mais madeira do que é produzida como sobrantes florestais e resíduos industriais pela indústria, exigindo que grandes quantidades de troncos de árvores tenham de ser adicionados à procura pelas unidades de “bio”energia. A existência de generosos subsídios serve de base a uma nova área de negócio para as empresas de celulose. O relatório publicado a 21 de Março mostra como as celuloses estão a queimar mais madeira para produzir energia do que qualquer outro sector em Portugal. Em 2021, o setor queimou quase 3 milhões de toneladas de biomassa. Daqui resulta a necessidade de instalar plantações para fins energéticos, mesmo com eucalipto, embora não com as densidades de 1000 a 1200 plantas por hectare, mas na ordem das 3000 a 5000. Qual a vantagem acessória, resistem melhor a ciclos entre incêndios cada vez mais curtos. Todavia, ardem com muito maior risco em fogo de copas.

A existência de generosos subsídios, criados no seio da União Europeia, designadamente do PRR, serve de base a uma nova área de negócio para as empresas de celulose. Só o forte apoio público suporta a destruição de ecossistemas e taxas de eficiência miseráveis na queima de material lenhoso para a produção de eletricidade, como a de cerca de 22% registada na central termoelétrica Figueira da Foz II, na fábrica de celulose Celbi, operada pela Greenvolt, uma subsidiária da Altri, unidade totalmente dependente da queima de biomassa florestal.

 

(No Público, suplemento Azul, a 26 de março de 2023)

sábado, 14 de janeiro de 2023

ICNF, facilitador de negócios?


Desde a fusão do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade com a Autoridade Florestal Nacional, que deu origem ao ICNF (Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas) que este organismo se transformou numa passadeira para a degradação da floresta em Portugal. Esta fusão, não por acaso, ocorreu no mesmo governo que criou a designada “Lei da Liberalização dos Eucaliptos”. No entanto, além de eucaliptos, na opacidade do abate de pinheiros mansos na Mata Nacional dos Medos, parece que este organismo do Estado se tornou também num garante de negócios, por ação e por omissão.

 

Os dados do último Inventário Florestal Nacional (IFN) registam em Portugal uma desflorestação entre 1995 e 2010 com uma recuperação, de cerca de 60 mil hectares, entre 2010 e 2015. Cerca de 50% dessa recuperação corresponde diretamente ao aumento de área de espécies exóticas e invasoras, principal dos quais o eucalipto, monocultura do regime. Estes factos podem ser observados nas notas oficiais do regime jurídico das ações de arborização e rearborização, o nome críptico que foi inventado para esconder a Lei da Liberalização dos Eucaliptos.

 

A ausência de fiscalização, marca registada do ICNF, favorece como sempre as celuloses, cuja associação empresarial é agora presidida pelo antigo Secretário de Estado das Florestas que fez aprovar a lei dos eucaliptos.

 

A recente denúncia de ilegalidade num “emblemático” projeto promovido pela associação das celuloses (na altura CELPA, agora BIOND) em Pedrógão Grande parece ter “surpreendido” muitas entidades. Isto, apesar dos eucaliptos plantados em vez de medronheiros aparentarem mais de ano e meio de vida aquando da denúncia. Ninguém terá passado por lá, em plena margem do rio Zêzere. Muito menos o ICNF.

 

As ferramentas disponibilizadas pela Google a qualquer cidadão do mundo permitem uma ação preventiva da fraude e em pleno gabinete. Mas nem isso acontece no ICNF. Nem neste caso de Pedrógão Grande, nem em qualquer outra região do país onde se denunciam diariamente casos de ilegalidade na expansão da monocultura desta espécie exótica. Isto, apesar do crescente envolvimento destas plantações nos incêndios florestais e, sobretudo, na área ardida em “povoamento florestal”.

 

Se quanto à estigmatização face à expansão do eucalipto o ICNF deixa dúvidas, tem gerado surpresa a forma como gere Áreas Protegidas e as Matas Públicas.

 

Para além do que se passou antes e depois do incêndio de 2017 (ou não se passou), na Mata Nacional de Leiria, há outro caso muito grave. Falamos da Mata Nacional dos Medos. 

 

Na Mata Nacional dos Medos, situada em área dos concelhos de Almada e Sesimbra, parte integrante da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica, começaram grandes abates de pinheiros mansos, sob responsabilidade do próprio ICNF. Fez já um ano que se verificou a contestação da população e de organizações aos cortes realizados. O ICNF, gestor da área, nunca identificou ou informou quantas árvores foram abatidas.



Na sequência dos cortes, estima-se terem saído da Mata grandes volumes de toros e estilha. Quantas toneladas de madeira (de pinheiro manso, reforça-se) de Património do Estado saíram da Mata? Quem usufruiu da receita gerada, já que a operação dessa intervenção em área do Estado foi custeada pelos contribuintes, através do POSEUR? A venda em hasta pública anunciada ao Parlamento pelo Gabinete do Ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, no início de 2022, sobre material lenhoso removido da Mata até finais de Dezembro de 2021, foi concretizada de que forma? Onde foi publicado o anúncio? Não foi visível em nenhuma das plataformas oficiais.  

 

concurso público criado para ações de desbaste e abertura de clareiras na Mata não previa a saída de madeira de pinheiro manso, mas o seu estilhaçamento e deposição em solo arenoso. Porque desapareceu então a madeira? Houve fiscalização da operação entregue a privados pelo ICNF? A dúvida é enorme, tendo em conta o equipamento pesado empregue em plena duna.

 

Desta intervenção promovida pelo ICNF não houve redução do risco de incêndio na Mata, mas sim um aumento do mesmo. Também não houve redução do risco de expansão de espécies invasoras nesta Área Protegida e Reserva Botânica, tendo-se esse risco agravado substancialmente. 

 

E num momento particularmente sensível a nível governamental como aquele que agora vivemos, tem de ser referida a presença muito próxima de interesses imobiliários por parte do secretário de Estado que tutela o ICNF, João Paulo Catarino. Esses interesses são verificáveis a partir do seu registo de interesses (a carecer de atualização) e de vários editais emitidos pela Câmara Municipal de Almada. Embora sediada em Proença-a-Nova, uma empresa de que João Paulo Catarino detém 50% tem atividade na Aroeira, no concelho de Almada, localidade contígua à Mata Nacional. 

 

Se considerarmos o valor atual do miolo de pinhão, obtido anualmente desta Mata Pública, além do volume de madeira removida do terreno, é volumosa a quantidade de receitas futuras que o Estado perdeu só com essa operação a favor não se sabe de quem. Cabe perguntar, já que o ICNF e o Governo nunca responderam, se o Ministério Público consegue fazer essas contas.

 

Paulo Pimenta de Castro e João Camargo

No Público, Suplemento Azul, a 14 de janeiro de 2023