sábado, 15 de julho de 2023

Pedrógão Grande e a Lei de Restauração da Natureza

Árvore morta e caída naturalmente em espaço florestal, a servir de abrigo e substrato a outros seres vivos


Num recente artigo de opinião, intitulado “Cortinas de fumo de uma lei incendiária”, da autoria da eurodeputada Lídia Pereira, publicado neste jornal, é invocada de modo ultrajante a dor causada pelo grande incêndio florestal de junho de 2017 na região de Pedrógão Grande para sustentar a oposição a uma proposta legislativa europeia de restauro da natureza.

Não é objeto do presente artigo elaborar sobre a importância dessa proposta legislativa, já que, também neste jornal, a mesma foi enunciada, com suporte técnico e científico, num artigo de opinião intitulado “A madeira morta é essencial para o restauro da natureza na Europa, e também em Portugal”, assinado pelo biólogo João Gonçalo Soutinho.

O que importa aqui realçar é que o que vitimou dezenas de pedroguenses em junho de 2017 não foram árvores mortas em pé ou caídas no solo. Em espaço dito florestal, foram sim árvores vivas, que constituíam, em teoria silvícola, povoamentos puros, ou seja, de uma só espécie; regulares, ou seja, de uma mesma idade; na maior parte explorados em regime de talhadia. Ou seja, claramente um sistema artificial. Nada do que se encontrava nessa área ardida em Pedrógão Grande tinha a ver com árvores dispersas vítimas de morte natural ou induzida nessa árvore pelo ataque localizado de agentes bióticos, ou por agentes bióticos, como por exemplo tempestades, localizadas em área naturais ou seminaturais, a servir de abrigo ou de substrato para um conjunto vasto de seres vivos. Ou seja, um micro “hotspot” de biodiversidade. O resultado de uma operação de restauro da natureza é exatamente o oposto da ocupação que provocou a morte de mais de uma centena de vidas humanas em 2017. Quando muito, no plano silvícola, uma aproximação a uma ação de restauro pode ser feita com a instalação de povoamentos mistos, de mais de uma espécie, fundamentalmente de espécies autóctones e arqueófitas, irregulares e jardinados, ou seja, de diferentes idades e que possa admitir a aproveitamento de madeira, mas em cortes pé a pé, isoladamente. O restauro da natureza não é compatível com operações de corte raso, os que acabam por deixar no solo grandes quantidades de sobrantes não estilhaçados, decorrentes de bicadas ou ramos, esses sim a oferecer maior perigo de incêndio. O mesmo acontece com pilhas de madeira cortada, empilhada e abandonada em espaço florestal, incluindo em Matas Nacionais.


Arvoredo abatido e abandonado em plantação de eucalipto em Pedrógão Grande, junto à barragem da Bouçã, este a fazer aumentar significativamente o perigo de propagação de futuros incêndios.


Se o objetivo do artigo assinado pela eurodeputada era atacar o PS, perdeu uma oportunidade de ouro de o fazer seriamente. De facto, o que o PS está a defender, e bem, no Parlamento Europeu é o oposto da sua prática governativa em Portugal. Por cá, tem promovido a sobre-exploração dos recursos naturais, designadamente dos florestais e em particular de arvoredo de espécies autóctones. A própria lei das “limpezas” das “faixas de gestão de combustíveis” é um paradoxo. Na maior parte dos casos de nada serve no que respeita à progressão dos incêndios, a não ser promover a expansão de espécies exóticas e invasoras, agravando incêndios futuros. O próprio Instituto da Conservação da Natureza e das Florestais tem, há mais de um ano, uma proposta de alteração a essa lei e que tarda em ver a luz do dia. Percebe-se, as “limpezas”, por um lado, disponibilizam uma oferta coerciva de material lenhoso à indústria, sobretudo ao sector energético, e sabe-se quem domina a produção de eletricidade através da queima de biomassa florestal primária, por outro, serviu para desresponsabilizar o governo das opções tomadas, sobretudo em outubro de 2017, com a permissão extemporânea das queimas e queimadas e a redução abrupta dos meios de combate perante o aviso da aproximação de um fenómeno meteorológico extremo, diluindo essa responsabilidade por centenas de milhares de proprietários rústicos.

Quando a eurodeputada refere, no contexto do seu artigo, “O PSD já alertou!” está a referir-se a que PSD. Não é certamente àquele que partilhou a governação com o Arq. Gonçalo Ribeiro Tellles, que com a criação da Reserva Ecológica Nacional, mais do que promover o restauro, procurou proteger os espaços naturais e seminaturais em Portugal. Infelizmente, dados da OCDE, no que respeita à biodiversidade, apontam Portugal como o segundo país da União Europeia com a segunda maior perda de áreas naturais e seminaturais ocorrida desde 1992, ano da Conferência do Rio. Não será também ao PSD de Carlos Pimenta que devolveu à natureza áreas do território ocupadas pela libertinagem pós-25 de abril. Nem será, certamente, ao PSD da autarquia cuja população se opôs a ser igual vítima dos incêndios florestais como ocorre em demasiados municípios do Centro de Portugal.

Percebe-se a intenção da eurodeputada em defender, em modo incendiário, os interesses do lóbi silvo-industrial, particularmente aquele que suporta a sua atividade em plantações, necessariamente de composição pura e regular, exploradas sobretudo em regime de talhadia. Bom, isso em teoria! Na prática, o que tem promovido é algo que não tem propriamente por base um conceito silvícola, mas que alguns especialistas apelidam de “sucata florestal”, plantações abandonadas ou mal geridas. Anotou-se a oposição deste sector a ações que envolvam a redução do perigo de incêndio na região de Pedrógão Grande, através do reordenamento e gestão da paisagem. Em todo o caso, não vale tudo! Muito menos em recorrer a um atroz exercício de desonestidade intelectual.

Importa por último mencionar que a proposta de Comissão Europeia, da lei de restauro da natureza, conta com o apoio de uma carta subscrita por mais de 3.000 cientistas, cerca de uma centena a partir de Portugal.


Paulo Pimenta de Castro

Engenheiro silvicultor

(publicado a 12 de julho no suplemento Azul do jornal Público)

 


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