terça-feira, 11 de abril de 2017

Os incêndios e a desertificação: realidade e caminhos futuros

A atividade silvícola e a sustentabilidade das florestas em Portugal Continental, nas últimas décadas, têm sido fortemente condicionadas pelos incêndios, os quais têm um considerável peso na atual situação de desflorestação, ou seja, de perda de solo com ocupação florestal para outros usos, maioritariamente para matos e pastagens.

A área ocupada por floresta, de acordo com o último Inventário Florestal Nacional (IFN), corresponde (em 2010) a 35,4% da área do território continental de Portugal. Entende-se aqui por floresta o terreno onde se verifica a presença de árvores florestais que tenham atingido, ou que pelas suas características ou forma de exploração venham a atingir, uma altura superior a 5 metros, e cujo grau de coberto (definido pela razão entre a área da projeção horizontal das copas das árvores e a área total da superfície de terreno) seja maior ou igual a 10%. Neste conceito estão incluídas, entre outras, as áreas florestais ardidas recentemente, ou sujeitas a corte único, seja em resultado de um ato de gestão ou de acidente natural, bem como as áreas ocupadas por vegetação espontânea e em que se admita a sua regeneração natural.

Já a área ocupada por matos e pastagens é de cerca de um terço do território continental, aproximadamente 2,85 milhões de hectares, com tendência a aumentar em função da desflorestação em curso.

Os incêndios assumem no País uma das principais preocupações ambientais, sobretudo junto das populações rurais, mais suscetíveis às suas consequências imediatas e subsequentes.

Entre 1980 e 2016, o número de anos em que a área ardida total ultrapassou os 100 mil hectares cifra-se em mais de 43% do período em apreço, incluindo os anos de 2003 e 2005 que, em média, registaram áreas ardidas superiores a 380 mil hectares. No mesmo período de tempo, a área ardida em povoamentos florestais superior a 50 mil hectares ocorreu em quase 41% do número total de anos envolvidos, incluindo o ano de 1991, em que essa área ultrapassou os 100 mil hectares, e 2003 e 2005, em que a área ultrapassou consideravelmente os 200 mil hectares de povoamentos florestais ardidos. Com o decorrer do período (1980-2016) não é visível uma tendência de desagravamento deste fenómeno, apesar de em 2008 e 2014 a área ardida total se ter cifrado abaixo dos 20 mil hectares, ou de a área ardida em povoamentos florestais em 1988, 2007 e 2014, ter sido registada abaixo dos 10 mil hectares. Ao contrário, os vários cenários inerentes às alterações climáticas apontam para um potencial agravamento deste fenómeno, com especial destaque na Península Ibérica.

No plano do sul da Europa, os valores registados de área ardida total entre 1990 e 2014 colocam Portugal numa situação muito desfavorável. Com apenas 6% da área territorial total dos Estados Membros do sul da Europa, concretamente da Grécia, Itália, França, Espanha e Portugal, este último surge em 9 dos 25 anos (37,5%) com área ardida superior a cada um dos demais. Em 9 anos, apesar da dimensão territorial e da área florestal, Portugal regista valores de área ardida total superiores aos observados em Espanha. Em quatro anos específicos (2003, 2005, 2010 e 2013), a área ardida total registada em Portugal foi superior à soma da área ardida total registada no conjunto dos outros quatro Estados Membros da União Europeia. Em dois anos (2010 e 2013), o número de ocorrências registadas em Portugal foi superior ao somatório das ocorrências registadas no conjunto dos outros quatro Estados Membros. No quarto de século envolvido, só em 3 anos o número de ocorrências registadas em Portugal foi inferior às registadas em Espanha (1990, 1992 e 2014).

De acordo com dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), na distribuição da área de povoamentos florestais ardidos por espécie no período de 2000 a 2011, 43% da área afetada correspondeu a plantações de eucalipto, 29% a pinhal bravo, 8% a povoamentos de sobreiro, 2% a povoamentos de azinheira, 1% a pinhal manso e os restantes 6% a outras espécies. Já em 2016, cerca de 70% da área ardida em povoamentos florestais correspondeu a áreas de plantações de eucalipto. As áreas associadas à produção de material lenhoso estão, em Portugal, condicionadas por um elevado risco, a uma elevada percentagem de área ardida em povoamentos florestais (superior a 70%).



No que respeita à desflorestação, na sequência da publicação do relatório Global Forest Resources Assessments 2015, pela FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), veio confirmada, no plano internacional, a ocorrência da mesma em Portugal. A desflorestação em Portugal tinha já sido identificada pelo último Inventário Florestal Nacional (em 2010). Os dados da FAO foram posteriormente reconhecidos pelo Eurostat.

Assim, no período de 1990 a 2015, Portugal regista uma desflorestação na ordem dos 254 mil hectares, ou seja, no último quarto de século o país perdeu mais de um quarto de milhão de hectares de floresta, em média, uma área superior à do concelho de Lisboa em cada ano.

De acordo com a FAO e o Eurostat, na União Europeia e no período de tempo atrás indicado, Portugal regista a única ocorrência de desflorestação no conjunto dos 28 Estados Membros.

Por sua vez, a Global Forest Watch, numa parceria com o World Resources Institute, considerando as manchas florestais com mais de 30% de coberto arbóreo observadas por satélite a nível mundial, emitiu uma lista dos países com a maior perda percentual desse coberto, ocorrida no período de 2001 a 2014 face a 2000, na qual Portugal surge na quarta posição, com 24,6% de perda, atrás da Mauritânia, do Burkina Faso e da Namíbia. Por outro lado, no que respeita a ganho de coberto arbóreo, ocorrido entre 2001 e 2012 face a 2000, Portugal surge apenas na décima segunda posição, com 18%. Estes dados, apesar do desfasamento de dois anos entre os dois períodos de analise, estão longe de contradizer a situação de desflorestação evidenciada pela FAO (2015) e antes considerada no IFN (2010).

Existe obviamente uma considerável relação entre os incêndios e a situação de desflorestação, todavia, importa aqui ter em conta que ambos são consequência de causas a diferentes níveis.

No plano mais estrito das florestas, a principal causa é identificada pela evolução do rendimento da atividade silvícola, concretamente com uma acentuada fase de contração, ocorrida sobretudo a partir de 2000. Está contração está muito associada ao declínio do pinhal bravo, com a incapacidade, politica, técnica e comercial, em conter os danos provocados, sobretudo, pelo nemátodo da madeira de pinheiro bravo.

Atendendo ao peso dominante da propriedade privada e comunitária no que respeita à posse das superfícies florestais em Portugal, o fator rendimento é determinante para a prossecução de uma gestão florestal profissional, desejavelmente sustentável, da qual faça parte a prevenção de riscos, quer face a agentes abióticos, os incêndios, quer a agentes bióticos, as pragas e as doenças. Importa ter em conta que, apesar de se registarem nalguns anos acréscimos no rendimento silvícola, no período compreendido entre 2000 e 2014, último ano com dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística, concretamente nas Contas Económicas da Silvicultura, não é possível evidenciar uma tendência de recuperação desse rendimento face ao ano de partida (2000). A evolução do rendimento está, por sua vez, muito condicionada pelo funcionamento dos mercados, caraterizado por uma exagerada pulverização da oferta e por uma forte concentração na procura. Apesar de em 1972 ter sido criado um organismo de regulação no sector, o facto é que o mesmo foi extinto no final da década de 80 do século passado. Vigora hoje a lei do mais forte, com consequências para terceiros.

No plano mais abrangente, a causa pode ser identificada com uma grave situação de despovoamento, com forte impacto no interior, face a um incontido êxodo rural, identificado no regime ditatorial, mas que se manteve e agravou no atual regime democrático. Aqui, em causa, está o rendimento das famílias, sobretudo ligado à atividade agrícola e a outras atividades de base rural. Até ao momento, não há registo de uma tendência clara que permita evidenciar um fluxo contrário de migração populacional. Pelo contrário, o mais recente diagnóstico, elaborado no âmbito do Programa Nacional para a Coesão Territorial, recentemente aprovado pelo Governo, aponta para dados muito preocupantes.

Por outro lado, as convulsões ao nível da política florestal do Estado Português, com a sucessiva e avulsa produção legislativa pós-estival, a elaboração de múltiplos e desagregados planos de intenções e os sistemáticos atropelos à Lei de Bases da Politica Florestal, não auguram frutuosas perspetivas. A abordagem aos problemas das florestas em Portugal, maximizando as consequências (os riscos), dando tratamento inconsistente aos efeitos (ao nível da gestão e do ordenamento) e ignorando as causas (os constrangimentos ao rendimento), não configura uma opção para a obtenção de resultados positivos. Desenquadrar a situação de desflorestação de um despovoamento a montante e da desertificação a jusante pode ser considerado um forte contributo para o insucesso. Continuar a determinar medidas de politica do topo para a base, sem ter em conta uma análise profunda e sistemática dessa base, constituída por quem detém a posse da esmagadora maioria das superfícies florestais em Portugal, pode dar continuidade a uma situação de declínio da silvicultura e de diminuição da área florestal nacional.

A concretização de uma reforma, que atenue os impactos dos incêndios e contrarie a desflorestação, tem de passar pela priorização das causas, por uma verdadeira mudança na análise do problema, por alargar o horizonte dessa análise para além dos espaços florestais, a domínios que claramente condicionam a concretização de ações corretivas de âmbito mais estrito.

No plano florestal, a solução para o problema passa, antes de mais, por eliminar as convulsões que caracterizam a politica nacional para o sector, pela criação de consenso, ou melhor, pela recuperação desse consenso no que respeita a uma visão de médio-longo prazo, quanto mais não seja, pelo regresso aos princípios e aos objetivos traçados na Lei de Bases da Política Florestal (Artigos 2.º, 3.º e 4.º da Lei n.º 33/96, de 17 de agosto).

No plano mais lato, há que condicionar a politica industrial à sustentabilidade dos recursos florestais nacionais, por um lado, regulando o funcionamento dos mercados, por outro, condicionando a expansão da capacidade fabril à formalização de contratos de abastecimento que permitam constatar a garantia de risco atenuado, seja quanto aos incêndios, pragas e doenças, seja na consequente desflorestação e na depreciação dos recursos naturais nacionais, não apenas dos renováveis.

A intenção de aumentar as competências das autarquias na concretização de medidas de politica florestal pode ter efeitos positivos, quer na salvaguarda dos interesses das populações rurais, seja ao nível da melhoria do rendimento da silvicultura, seja numa maior contenção dos riscos associados à atividade silvícola, quer na salvaguarda dos recursos naturais e paisagísticos das áreas sob a sua responsabilidade. No plano comercial, face ao fraco desempenho do associativismo florestal, as autarquias podem igualmente desempenhar papel de relevo, designadamente criando condições para concentrar as produções obtidas nas suas áreas de abrangência, proporcionando mais valias à oferta local.

Em todo o caso, não se vislumbra um combate de sucesso à desflorestação, e bem assim aos incêndios, sem um ambicioso plano de desenvolvimento rural, que assegure um adequado rendimento às famílias rurais, que permita contrariar o fluxo migratório para os centros urbanos e para o litoral, ou seja, sem um plano sério de combate ao despovoamento. Por sua vez, face às características do investimento florestal, caracterizado por longos períodos de retorno, o sucesso do combate à desflorestação estará sempre condicionado ao investimento em modelos de negócios de curto e médio períodos de retorno, seja no âmbito da produção agroalimentar ou agro-silvo-pastoril, no turismo rural ou noutros negócios de base rural. A investigação florestal desempenha aqui um papel de relevo, nomeadamente ao nível da melhoria da produtividade, também no encurtamento do período de retorno dos investimentos florestais, assegurado que esteja um serviço de extensão florestal que permita estabelecer e dar continuidade a um fluxo biunívoco de informação com a produção, e desta com os mercados.


Paulo Pimenta de Castro
Engenheiro Silvicultor

Presidente da Direção da Acréscimo, Associação de Promoção ao Investimento Florestal

(Publicado na Revista AGROTEC, N.º 22, 1.º Trimestre 2017)

1 comentário:

  1. O blogue fogos2017.blogspot.com apresenta imagens de satélite de alta-resolução (10 metros/pixel) dos fogos que ocorreram em Portugal em 2017. São centenas de imagens a cores, muito detalhadas, do "Antes e Depois" dos incêndios (mostram a mesma zona lado a lado, antes e depois do fogo). As imagens ajudam a perceber a dimensão dos fogos e o seu impacto nas populações. É preciso ver o que se passou para perceber, decidir, ajudar.

    ResponderEliminar